Doação sanguínea por homossexuais masculinos no Brasil: o embate Supremo Tribunal Federal x ANVISA e a (in)existência de diálogo entre poderes(*)

Blood donation by male homosexuals in Brazil: the clash Supreme Court Federal x ANVISA and (in) existence of dialogue between powers

Maria Valentina de Moraes(**)

Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz do Sul, Brasil)

Eliziane Fardin de Vargas(***)

Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz do Sul, Brasil)

Resumo: O período de inaptidão de 12 meses após o último ato sexual de homens que fazem sexo com outros homens e/ou suas parceiras para que possam exercer o ato solidário de doação sanguínea foi debatido pelo STF na ADI 5543/DF, que entendeu pela inconstitucionalidade dos normativos que traziam essas restrições. Após a decisão a Agência Nacional de Vigilância Sanitária emitiu nota aos hemocentros para que mantivessem o procedimento de coleta das doações sanguíneas conforme vinha-se realizando antes da decisão do Tribunal. Dessa forma, utilizar-se-á o método de abordagem hipotético-dedutivo e o método de procedimento analítico para responder ao seguinte questionamento: há um diálogo entre poderes em relação ao posicionamento adotado pelo STF na ADI 5543 e a posterior orientação da Anvisa que preconiza a manutenção dos critérios de inaptidão para doação de sangue por HSHs? Conclusivamente se pôde afirmar a inexistência de diálogo entre o STF e o posicionamento da Anvisa diante da constatação de insistência por parte da agência em permanecer perpetuando uma conduta discriminatória através da emissão de orientações contrárias ao precedente firmado pela Corte na ADI 5543.

Palavras-chave: ADI 5543/DF - Diálogo entre poderes - Doação de sangue HSH - Supremo Tribunal Federal - ANVISA - Teorias dialógicas institucionais

Abstract: The 12 months period of disability after the last sexual act of men who have sex with other men and/or their partners so that they can exercise the solidarity act of blood donation was discussed by the STF in ADI 5543/DF, which understood by unconstitutionality of the regulations that brought these restrictions. After the decision, the National Sanitary Surveillance Agency issued a note to blood centers to maintainthe procedure for collecting blood donations as it had been taking place before the Court’s decision. Thus, the hypothetical-deductive approach method and the analytical procedure method will be used to answer the following question: there is a dialogue between powers in relation to the position adopted by the STF in ADI 5543 and the subsequent guidance by Anvisa which recommends the maintenance of the criteria for disability for blood donation by MSMs? In conclusion, it was possible to affirm the absence of dialogue between the STF and Anvisa’s position in view of the agency’s insistence on continuing to perpetuate discriminatory conduct by issuing guidelines contrary to the precedent established by the Court in ADI 5543.

Keywords: ADI 5543/DF - Dialogue between powers - Blood donation by MSM - Brazilian Supreme Court - ANVISA - Institutional dialogical theories

1. Considerações iniciais

Desde o estopim da propagação do vírus HIV iniciou-se uma série de restrições quanto aos critérios de aptidão para doação de sangue com a finalidade de conter a transmissão e o avanço do vírus HIV através de transfusões de sangue. No Brasil, segundo normativos da Anvisa e do Ministério da Saúde, homens que fazem sexo com outros homens (HSH)(1) e/ou suas parceiras eram considerados inaptos para doação sanguínea pelo período de 12 meses após a última relação sexual.

Demonstrando-se a medida desproporcional visto que, atualmente, em razão dos avanços no ramo da medicina e dos estudos envolvendo o vírus e sua transmissão se tem mecanismos capazes de um monitoramento mais preciso da janela imunológica, o que faz com que o período de 12 meses de inaptidão seja uma restrição excessivamente desproporcional, prejudicando tanto o exercício do ato empático da doação de sangue, como também cria óbice desproporcional de abstenção a liberdade sexual como condição para ser considerado um doador apto.

Dessa forma, o STF ao julgar a ADI 5543/DF declarou a inconstitucionalidade dos normativos da Anvisa e do Ministério da Saúde por reconhecer a desproporcionalidade dos critérios de inaptidão, preconizando que aos homossexuais masculinos e suas parceiras não fosse mais adotada a regra de inaptidão por 12 meses após a última prática sexual. De maneira diversa, posteriormente a decisão do STF, a Anvisa em nota de orientação aos hemocentros responsáveis pela coleta de sangue instruiu que fosse mantido os procedimentos até então adotados. Diante desses impasse, utilizando-se o método de abordagem hipotético-dedutivo e o procedimento analítico, tem-se como problema de pesquisa, que norteará o trabalho, o seguinte questionamento: há diálogo entre a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 5543/DF e a orientação emitida pela Anvisa que impõe a manutenção dos critérios de inaptidão anteriormente adotados quanto à doação de sangue por homossexuais masculinos?

Tem-se como hipótese a inexistência de um diálogo entre o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal e as recomendações emitidas pela Anvisa, uma vez que essas recomendações contrariam a decisão ao impor que se mantivesse a restrição de inaptidão para doação sanguínea por 12 meses após a última relação sexual de homossexuais masculinos e/ou suas parceiras, mesmo após o Supremo Tribunal Federal fixar posicionamento de modo contrário, sem uma superação argumentativa ou científica deste.

A relevância da pesquisa proposta justifica-se pelo fato de que é através do desenvolvimento de um diálogo adequado entre os Poderes do Estado -o que aqui compreende-se como o momento em que os atores públicos do debate buscam, através da argumentação, a superação da decisão anterior com o escopo de construírem um novo posicionamento que, em relação ao posicionamento anterior, mostre-se mais eficiente em promover o resguardo dos direitos fundamentais- que podemos obter decisões que, da melhor forma, concretizem e respeitem os direitos fundamentais de seus tutelados, assim, corroborando com o dever de proteção inerente a esses direitos.

Diante disso, justifica-se a escolha da decisão da ADI 4481 pois, nesse caso, é possível visualizar os reflexos negativos ocasionados pela ausência do desenvolvimento de um adequado diálogo institucional, o que acabou acarretando uma afrontas aos direitos fundamentais dos HSHs, bem como pode-se vislumbrar que nessa decisão há um posicionamento bastante relutante ao diálogo, por parte da Anvisa, ao recusar-se a cumprir a decisão do STF sem desenvolver esforços argumentativos no sentido de superar a decisão judicial através da construção de um novo posicionamento que melhor guarnece-se os direitos fundamentais.

Têm-se como principais premissas do trabalho, a fim de, através dessas, responder ao problema de pesquisa proposto: (i) a análise do teor da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade dos critérios de inaptidão temporal dos homossexuais masculinos; (ii) a averiguação do posicionamento adotado pela Anvisa em relação a decisão; e (iii) Para, ao final, verificar a presença ou não de um diálogo entre poderes, discutindo-se as teorias dialógicas institucionais.

2. Ação direta de inconstitucionalidade 5543/DF: a inconstitucionalidade do critério temporal de inaptidão ao exercício do ato de doação sanguínea por homossexuais masculinos.

O Partido Socialista Brasileiro, em 07 de junho de 2016, protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Direita de Inconstitucionalidade 5543/DF, a qual tinha como objeto o debate quanto a (in)constitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, normas estas que vedavam temporariamente que homens que praticassem sexo com outros homens e/ou suas parceiras doassem sangue, considerando-os inaptos para o ato no período de 12 meses subsequentes a última relação sexual(2).

O feito foi julgado em sessão virtual iniciada em 1 de maio de 2020 e conclusa no dia 08 do mesmo mês e ano. Assim, por maioria dos votos(3), o pedido foi julgado procedente, nos termos do voto do Ministro relator Edson Fachin, declarando inconstitucional tanto as vedações impostas pela Resolução do Ministério da Saúde quanto da Resolução da Anvisa.

O Relator considerou que as normas debatidas violavam à dignidade humana(4) (art. 1º III/CF), ofendiam os direitos de personalidade dos indivíduos pertencentes a esse grupo, bem como, ainda que desintencionalmente, afrontavam o direito fundamental à igualdade(5) ao passo que impedem que essas pessoas sejam tratadas de maneira igualitária (art. 5, caput/CF) (Brasil, STF, 2020, p. 4). O Ministro salientou que as normas em comento desestimulam os princípios de uma sociedade justa e solidária e refreia o que o Estado deveria estimular, que é uma sociedade livre de quaisquer preconceitos e discriminações (Artigo 3, IV/CF). Atento às normas internacionais, finalizou seu voto ressaltando a afronta direta ao disposto em diversos tratados e convenções internacionais incorporados pelo Brasil, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, do Pacto de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, os quais, face à previsão do artigo 5, § 2 da Constituição Federal, são materialmente constitucionais (Brasil, STF, 2020, pp. 39-40).

O Relator afirmou que “sangue e pertencimento têm, ao longo da história, penduleado entre os extremos do acolhimento e da exclusão” (Brasil, STF, 2020, p. 2), considerou o sangue como uma excelente metáfora capaz de exemplificar o que nos identifica como humanos é “a prova pulsante do pertencimento a uma mesma espécie, (...) é justamente esse pertencimento ressignificado que permite que se exerça o empático e eminentemente altruísta gesto de “doar sangue” em auxílio a outrem dotado da igual condição humana.” (Brasil, STF, 2020, p. 3), de modo que, qualquer óbice imposto a determinados grupos, que os restrinja do exercício desse ato empático, deve ser analisado com extremo cuidado, devendo a restrição contar com estritas motivações públicas que, racionalmente, traga uma proporcional justificativa para que as restrições existam (Brasil, STF, 2020, p. 3).

Na construção da linha argumentativa do voto o Ministro Edson Fachin levantou o questionamento de que “o estabelecimento, ainda que indireto, de um grupo de risco a partir da orientação sexual de homens e a submissão dessas pessoas (a incluir aqui suas eventuais parceiras) a medidas restritivas ao ato empático de doar sangue é justificável?” (Brasil, STF, 2020, p. 6). Afirmou o relator que, no seu entendimento, essa limitação não seria justificável já que a restrição em relação a um grupo de risco, ao invés de uma determinada conduta de risco, estabelece uma discriminação que leva a uma pressuposição indevida(6) -que atinge em especial os homossexuais e bissexuais masculinos- de que, exclusivamente pela orientação sexual que possuem, seriam essas pessoas potenciais transmissores de moléstias, em especial a AIDS (Brasil, STF, 2020, p. 6).

Afirmou o Ministro Edson Fachin que “a conduta é que deve definir a inaptidão para a doação de sangue, e não a orientação sexual ou o gênero da pessoa” (Brasil, STF, 2020, p. 20). Porém, ocorre de maneira contrária nos normativos debatidos, já que esses, indevidamente, desdenham um grupo tendo como fundamento sua orientação sexual, impossibilitando-os do exercício do “gesto livre e solidário de doação de sangue, tratando os homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes de forma desvalorada em relação a todas as demais pessoas.” (Brasil, STF, 2020, p. 20).

O Ministro Roberto Barroso rememorou o histórico que levou à implementação dessas restrições à doação de sangue por homossexuais masculinos, salientou que essas medidas foram adotadas nos anos 80 em razão da epidemia de AIDS(7) que atingia principalmente os homossexuais masculinos, usuários de drogas e os hemofílicos. Assim, de modo a buscar conter a epidemia, diversos países acabaram vedado que homossexuais masculinos doassem sangue. Afirmou o Ministro Roberto Barroso que a medida, na época, continha um justificável intuito preventivo de frear os avanços da epidemia que rapidamente se espalhava. Porém, o Ministro ressaltou que isso ocorreu a um quarto de século atrás; atualmente há um maior conhecimento e controle, tanto da doença como dos próprios métodos de triagem do sangue que é doado aos hemocentros, “de modo que o que talvez possa ter se justificado pelo princípio da precaução, lá atrás, diante do avanço da compreensão da doença e da sofisticação dos exames laboratoriais hoje feitos poderia já não mais se justificar” (Brasil, STF, 2020; Voto do Ministro Roberto Barroso).

Nesse mesmo sentido, afirmou o Ministro Edson Fachin que, em relação ao sangue doado, houve um significativo avanço nos mecanismos de detecção do HIV e da hepatite, em razão da diminuição do período necessário para o monitoramento da janela imunológica(8) “passando esta de 6 a 8 semanas para apenas 12 dias com o atual teste utilizado em todos os Bancos de Sangue do País (teste do ácido nucleico – NAT, conforme Portaria 2.712 de 12 de novembro de 2013 do Ministério da Saúde).” (Brasil, STF, 2020. p. 30). Sob esse argumento, reafirmou uma vez mais inexistir razão justificável para a imposição de completa abstenção sexual por 12 meses a homens homossexuais e bissexuais para que sejam considerados doadores aptos (Brasil, STF, 2020, p. 30).

O Ministro Ricardo Lewandowski, divergindo da corrente majoritariamente adotada pelos demais Ministros, pautou seu voto nos dados do Boletim Epidemiológico de AIDS de 2016, levantamento o qual estimou que das pessoas infectadas pelo HIV, no ano de 2015, “50,4% dos homens tiveram exposição exclusivamente homossexual, bissexual (9%) e heterossexual (36,8%). Entre as mulheres, na mesma faixa etária, 96,4% dos casos se inserem na categoria de exposição heterossexual.” (Brasil, STF, 2020, p. 4).

Diante dos dados apresentados pelo Ministro Ricardo Lewandowski, esse salientou que no caso de mulheres homossexuais o risco de transmissão não é elevado, portanto, essas não sofrem nenhuma categoria de restrição à doação, já no caso das doações realizadas por homens que fazem sexo com outros homens depreendem-se que o risco de transmissão de HIV é mais elevado; e que, em razão disso, faz-se necessária a maior rigorosidade de critérios para a doação por HSHs, defendendo assim, inexistir discriminação, pois “esse grupo pode doar sangue, desde que respeitado o prazo de 12 meses (período que, com segurança, talvez possa ser reduzido) - e também porque homossexuais do sexo feminino não estão sujeitas à inaptidão temporária.” (Brasil, STF, 2020, p. 4).

Em igual sentido, o Ministro Marco Aurélio votou pela improcedência da ação, observando que, por mais que se reconheça que o risco de contágio não se dê em razão da orientação sexual do doador “a alta incidência de contaminação observada, quando comparada com a população em geral, fundamenta a cautela implementada pelas autoridades de saúde, com o fim de potencializar a proteção da saúde pública.” (Brasil, STF, 2020, p. 4).

O Ministro Relator (Brasil, STF, 2020, p. 15) ressaltou que, é exatamente a pretexto de proteger os receptores de sangue que a Portaria do Ministério da Saúde e a Resolução da Anvisa desrespeitam a identidade de indivíduos integrantes desse grupo em razão de sua orientação sexual(9), de modo que as “normas limitam sobremaneira a doação de sangue de um grupo específico de pessoas pelo simples fato de serem como são, de pertencerem a uma minoria, e não por atuarem de maneira arriscada”, empregando, com isso, um tratamento segregacionista, desrespeitoso e desigual, conduta essa que é reprimida pelo Ministro Edson Fachin no seguinte trecho:

Não se pode tratar os homens que fazem sexo com outros homens e/ou suas parceiras como sujeitos perigosos, inferiores, restringido deles a possibilidade de serem como são, de serem solidários, de participarem de sua comunidade política. Não se pode deixar de reconhecê-los como membros e partícipes de sua própria comunidade. Isso é tratar tais pessoas como pouco confiáveis para ação das mais nobres: doar sangue. A evitação do receio de doação de sangue possivelmente contaminado há de seguir os mesmos protocolos que acabam por vedar a utilização de sangue de pessoas doadoras que praticaram ou se submeteram a condutas arriscadas e que, portanto, podem ter sido, de alguma forma, expostas à contaminação. É preciso, pois, reconhecer aquelas pessoas, conferir-lhes igual tratamento moral, jurídico, normativo, social (Brasil, STF, 2020, p. 15).

No mesmo sentido que o Relator, o Ministro Luís Roberto Barroso votou pela inconstitucionalidade de ambos os dispositivos em comento, por considerar que esses restringem desproporcionalmente os direitos fundamentais da comunidade LGBT, em especial os homossexuais masculinos, em razão da insustentabilidade do critério da inaptidão por 12 meses, já que, na atualidade, os exames laboratoriais são capazes de eliminar o risco de que o teste seja um falso negativo, ou seja, os normativos pecam pelo excesso de lapso temporal de inaptidão (Brasil, STF, 2020, Voto do Ministro Luís Roberto Barroso).

Seguindo a corrente majoritária, a Ministra Rosa Weber ressaltou seu entendimento de que as normas impugnadas fornecem resultados discriminatórios, pois, “a rigor, desconsideram, por exemplo, o uso de preservativo ou não, o fato de o doador ter ou não um parceiro fixo, que, a meu juízo faria toda a diferença para efeito de definição de uma conduta de risco” (Brasil, STF, 2020, Voto da Ministra Rosa Weber).

Divergindo da corrente majoritária, o Ministro Alexandre de Moraes votou pela procedência parcial da ação; defendeu a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 64 da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde -que elenca a inaptidão por HSHs por 12 meses-, e a parcial nulidade para a exclusão do trecho que menciona a abstinência por 12 meses na redação do art. 25, XXX da Resolução da Anvisa e dar a alínea “d” desse dispositivo interpretação conforme a Constituição para que se reconheça possível que homens que fazem sexo com outros homens sejam considerados aptos para doação sanguínea, contanto que sejam realizados os testes imunológicos com estrita observância aos protocolos e após a passagem do período da janela imunológica estipulada pelas autoridades de saúde, a fim de que se evite qualquer hipótese de propagação de contaminação (Brasil, STF, 2020, Voto do Ministros Alexandre de Moraes).

O Ministro Relator ainda defendeu serem as normas em debate violadoras dos direitos à igualdade e não-discriminação para com os homossexuais masculinos, ao passo que vedam a fruição de duas dimensões do direito de personalidade desses – o exercício do ato empático de ser doador de sangue e o de poder viver sua sexualidade irrestritamente (Brasil, STF, 2020, p. 36). Ainda debruçou-se sobre tal questão elucidando que o direito a não-discriminação dialoga diretamente com a proteção disposta no art. 1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual obriga os Estados Partes a adotarem condutas de respeito aos direitos e liberdades, bem com comprometem-se a garantir o exercício livre e pleno aos direitos elencados na Convenção sem que haja qualquer espécie de discriminação seja “por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.” (Brasil, STF, 2020, p. 36).

Contudo, foi possível notar a preocupação da Suprema Corte Brasileira em adotar um posicionamento que além de estar a par do elevado défice de doações nos hemocentros Brasileiro -especialmente no momento de crise pandêmica que acomete o Brasil e o mundo-, de igual forma está atento e concatenado com os avanços na área da medicina, os quais já possibilitam garantir que a doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais e/ou suas companheiras possam acontecer de maneira segura -tanto para doador quando ao receptor-, sem risco de transmissão de qualquer tipo de enfermidade, antes mesmo do prazo de inaptidão constante nas normas declaradas inconstitucionais, visto a diminuição do período para verificação da janela imunológica.

Dessa maneira, aparentemente, o poder judiciário demonstra, uma vez mais, adotar posicionamentos que vão além da simples interpretação constitucional, mas sim adotam uma postura no sentido de busca pela concretização dos princípios da igualdade e da não-discriminação buscando erradicar condutas de cunho segregacionista que impossibilitam que determinadas grupos -no caso em comento as minorias sexuais- possam gozar livremente de seus direitos fundamentais.

3. A Portaria da Agência Nacional De Vigilância Sanitária e a (não) superação da decisão do Supremo Tribunal Federal

Como analisado até aqui, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543/DF, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 2016, objetivava a declaração de inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde, e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. O artigo 64(10) da Portaria trazia as inaptidões para a doação de sangue, pelo período de 12 meses, constando, dentre estas, homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou suas parceiras sexuais, enquanto a Resolução da Anvisa, que dispõe sobre as boas práticas no ciclo do sangue, em seu artigo 25(11), disciplina também os parâmetros de seleção dos doadores, considerando os HSHs inaptos pelo mesmo período.

O debate sobre a constitucionalidade dessas normas centrou-se na classificação de um grupo específico como grupo de risco por sua própria orientação sexual,(12) o que ofenderia o direito à igualdade, visto que as demais inaptidões se relacionam com condutas de risco, como ter tido relação sexual com pessoa portadora de infecção pelo HIV, com desconhecidos ou pessoas que sofreram violência sexual, por exemplo (Brasil, ANVISA, 2014). Na ADI 5543/DF enfrentou-se de maneira aprofundada a discussão acerca da ofensa a igualdade, não sendo objeto da presente pesquisa discutir a existência ou não de uma violação ao direito de igualdade, mas sim, compreender a partir do posicionamento jurisdicional firmado, o posicionamento executivo sobre o tema que deste decorre.

As teorias dialógicas(13) permitem, nesse sentido, discutir a realização de um diálogo entre os Poderes do Estado que vise uma maior efetivação de direitos fundamentais e construa caminhos para melhores decisões, argumentativamente consideradas. As teorias do diálogo sustentam, assim, uma superação da noção de última palavra definitiva (Mendes, 2008), que, via de regra, é atribuída ao Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal. Afastam, contudo, tanto a existência de uma supremacia judicial, em que a última palavra cabe ao Judiciário, quanto de uma supremacia legislativa, em que a decisão judicial sempre será superada pela criação legislativa (Brandão, 2012).

As primeiras defendem que os juízes estariam em melhores condições de decidir, por possuírem capacidade técnica e não estarem tão vinculados à representação popular (Brandão, 2012), enquanto as segundas se valem de argumentos de autoridade que colocam o Poder Legislativo no topo da escala hierárquica e em melhores condições de deliberação sobre as mais diversas temáticas, não podendo ser desafiado (Mendes, 2008). Leal e Argulhes (2016, p. 204) criticam também a utilização de argumentos que se pautam em capacidades institucionais assimetricamente consideradas, em que a capacidade de uma instituição é discutida com foco em seus limites de atuação enquanto a a ela comparada é vista de forma idealizada, fazendo com que “nesses raciocínios assimétricos, a resposta para a pergunta “quem deve decidir?” penda facilmente para a instituição idealizada”.

A adoção de uma perspectiva dialógica na arena de debate público pauta-se sobre a noção de que as decisões, tomadas por qualquer um dos três Poderes do Estado, passem a ter “um caráter parcialmente definitivo, pois, podem ser contestadas em outras instâncias públicas, [em que] cada espaço de poder possui características que o potencializam ou o inibem para a realização de tomada de decisões” (Clève & Lorenzetto, 2015, p. 189). A atribuição desse caráter parcialmente definitivo é, portanto, o ponto central das teorias dialógicas, afastando a ideia de definitividade da decisão judicial que estrutura o ordenamento brasileiro.

Considerar a possibilidade de superação de uma decisão proferida de forma legítima por um dos Poderes do Estado permite o reconhecimento da falibilidade das instituições (Brandão, 2012) e abre espaço para a construção de decisões melhores fundamentadas e que podem ser permeadas por novos argumentos. A adoção de posturas dialógicas permite uma releitura interessante: olhar os velhos desenhos isntitucionais já existentes com uma nova ótica, que reconheça as tensões, próprias do constitucionalismo, que se dão entre os compromissos do governo e a as limitações que são apresentadas pelas maiorias (Tushnet, 2014).

A existência de um diálogo entre poderes admite a distribuição de funções entre os Poderes e a compensação de um poder com outro, configurando-se como um mecanismo que possibilita a troca de motivos institucionais que amparam as decisões (Mendes, 2014). Com isso, o processo de tomada de decisão torna-se, desse modo, mais deliberativo(14) e aberto, o que faz, na esfera jurisdicional, com que os juízes “recommend, but do not mandate, a particular course of action based on a rule or principle in a judicial case or controversy” (Katyal, 1997, p. 1710).

Assim, “dialogue theories focus on the institutional process through which decisions about constitutional meaning are made, suggesting that this involves the shared elaboration of constitutional meaning between the judiciary and other actors” (Bateup, 2005, p. 11), sejam esses atores os Poderes Legislativo ou Executivo ou suas instituições, o que Friedman (1993) classifica como o “corpo politico”. Neste processo, os Tribunais podem -e em uma perspectiva dialógica exógena(15), devem- tornar-se condutores do diálogo, com virtudes ativas que são voltadas à essa promoção (Bickel, 1961) ou mesmo alimentando um faro político que permita que sejam identificadas, pelo Poder Judiciário, situações propícias ao diálogo (Mendes, 2008).

Sustenta-se, deste modo, em uma conotação emotiva que é favorável ao apelar para a resolução de conflitos institucionais de forma respeitosa e civilizada, superando antagonismos políticas eventualmente existentes (Gargarella, 2014), convidando a cada um dos atores a uma conversa amigável e amparada por bons argumentos. Fragilizada essa troca entre os Poderes, quando não trazidos novos debates ao espaço dialógico ou “na ausência de argumentação idônea a suplantar os fundamentos invocados na decisão proferida pelo STF, o diploma legislativo editado com o objetivo de superar o entendimento firmado (...) não subsistirá” (Barbosa & Lima, 2018, p. 120) diante de nova análise judicial, não ocorrendo um diálogo frutífero que privilegie direitos fundamentais.

Assim, é possível afirmar as teorias dialógicas não se preocupam com um modelo ideal de juiz ou de legislador, e sim na compreensão da importância da tarefa dialógica proposta, que se dará por meio da interlocução entre tais atores (Mendes, 2008). Tem-se a preocupação com a realização da interlocução e não diretamente com os representantes dos Poderes -que sim, precisam adotar posturas abertas ao diálogo- centrando-se o foco das teorias dialógicas na engrenagem institucional existente e no seu melhor funcionamento.

Não se trata, portanto, de uma mera substituição de decisões políticas que não dá fim a um debate constitucional, mas sim da adoção de uma postura dialógica, por parte dos atores envolvidos, voltada a uma superação argumentativa da decisão anterior, demonstrando as razões que tornam o novo posicionamento melhor – e, na ótica aqui adotada, que melhor efetive direitos fundamentais. Tushnet (2014, não paginado) estabelece um modelo ideal de diálogo(16), que bem ilustra a questão:

la Legislatura promulga una ley que luego es declarada inconstitucional por la Suprema Corte al violar lo que la Corte entiende por protección constitucional a la libertad de expresión. La Legislatura puede responder de distintas formas. Por ejemplo, señalando que la Suprema Corte, servicialmente, ha dirigido su atención a un problema constitucional que la Legislatura había ignorado o infravalorado antes. Por lo tanto, al centrar su atención en la cuestión constitucional, puede que termine estando de acuerdo con la interpretación de la Corte y modifique la ley para que sea consistente con esa interpretación. O, algo aún más interesante, puede que la Legislatura concluya, luego de deliberar, que encuentra una interpretación de la provisión de la libertad de expresión según la cual la ley original era constitucional y, sin modificación alguna, más razonable que la de la Corte.

Tomando-se como base essa estrutura de diálogo proposta pelo autor, observa-se que no caso ora analisado, em tese, o diálogo se estabelece entre os Poderes Executivo, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e do Ministério da Saúde, e Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal. Tem-se, assim, uma normativa executiva definida – artigos 64, IV, da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde, e 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada -RDC n. 34/2014 da Anvisa- seguida da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543/DF, que explora as razões e fundamentos que levaram a sua declaração de inconstitucionalidade.

Após a decisão proferida, em caráter parcialmente definitivo, pelo Supremo Tribunal Federal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, através de nota técnica divulgada, oito (08) dias após a decisão judicial, no sítio oficial da agência, determina que “até o julgamento final da ADI 5543, os serviços de hemoterapia em todo o país devem seguir as regras estabelecidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa” (Brasil, ANVISA, 2020) e que, portanto as “normas da RDC 34 permanecem em vigor” (Brasil, ANVISA, 2020) Destaca a nota oficial que:

A Anvisa esclarece que, até o encerramento definitivo do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, as regras previstas na Portaria de Consolidação 5/2017 – Anexo IV do Ministério da Saúde (MS) e na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014 da Agência sobre doação de sangue devem ser seguidas normalmente pelos serviços de hemoterapia públicos e privados em todo o país. (...)

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, em 8 de maio, o julgamento da ADI 5543, tendo considerado inconstitucionais os dispositivos do MS e da Anvisa que consideram inaptos temporariamente para doação de sangue “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes”.

A Anvisa aguarda a publicação do acórdão do STF sobre o julgamento para analisar as medidas administrativas e judiciais cabíveis, inclusive eventual apresentação de recurso sobre o tema. Assim sendo, enquanto não houver o julgamento final da ADI 5543, estão mantidas as normas vigentes.

Com isso, percebe-se que a Anvisa não apresenta novos argumentos ou razões para que a decisão jurisdicional seja implementada, restringindo-se a manifestação oficial a reafirmar a validade da normativa declarada inconstitucional e indicar a adoção de medidas administrativas e judiciais cabíveis após a publicação do acórdão judicial. Aproximadamente um mês após o posicionamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por meio da nota referida, em 08 de julho de 2020, é publicada no Diário Oficial da União (DOU), a Resolução da Diretoria Colegiada 399, de 7 de julho de 2020, determinando que:

Art. 1 Fica revogada a alínea “d” do inciso XXX do art. 25 da Resolução de Diretoria Colegiada – RDC 34, de 11 de junho de 2014, que dispõe sobre as Boas Práticas no Ciclo do Sangue. Art. 2º A Gerência de Sangue, Tecidos, Células e Órgãos – GSTCO/DIRE1/ANVISA elaborará orientação técnica a respeito do gerenciamento dos riscos sanitários e das responsabilidades pertinentes aos serviços de hemoterapia públicos e privados em todo o país e aos demais atores envolvidos em virtude do disposto no art. 1º (Brasil, ANVISA, 2020).

A Resolução não apresenta, de mesma forma, razões que sustentassem o posicionamento inicial da própria agência, por ela revisto na Resolução, limitando-se a revogar a normativa declara inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal um mês antes. Em razão do exposto, reforça-se a inexistência de fundamentos que sustentem qualquer um dos posicionamentos adotados pela Anvisa, seja contrariando a decisão judicial ou adotando o posicionamento nela disposto. Não há, assim, a possibilidade de se falar em um diálogo institucional em qualquer dos momentos, dado que, ao reforçar seu posicionamento inicial, divergindo da decisão judicial, não são oferecidas razões para a mudança de entendimento, e ao determinar a revogação, de mesmo modo, não há qualquer exposição de motivos, existindo, apenas, o cumprimento de uma decisão judicial.

4. Considerações finais

Inicialmente, nosso estudo perpassou pelos fundamentos empregados pelo Supremo Tribunal Federal em relação ao debate quanto à adequação ou desproporcionalidade do prazo de inaptidão previsto nos normativos do Ministério da Saúde e da Anvisa. Percebeu-se que a Corte, mais uma vez, resguardou os diretos a igualdade e não-discriminação ao considerar que as normas em comento apresentavam um lapso de tempo injustificável e desproporcional de abstinência sexual para que HSHs e suas parceiras fossem considerados doadores aptos. Dessa maneira, ao declarar a inconstitucionalidade o Supremo Tribunal Federal não apenas resguardou o direito ao tratamento igualitário, bem como asseverou a superação da utilização do critério de grupo de risco, reconhecendo ser adequada a adoção do critério da conduta de risco.

A partir da análise da decisão passou-se a verificação da (in)existência de diálogo entre o Poder Executivo -ora representado pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde- e o Poder Judiciário -representado pelo STF-, em razão do julgamento da ADI n. 5543/DF. A questão foi analisada levando em consideração o posicionamento recalcitrante adotado pela Anvisa após a decisão do Supremo Tribunal Federal, já que posteriormente ao julgamento a agência reguladora, através de nota técnica, proferiu recomendações aos hemocentros Brasileiros em sentido oposto ao da decisão, orientando-os à manter o procedimento e os critérios estabelecidos na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014 e a posterior retificação de seu posicionamento revogando o dispositivo da Resolução já declarado inconstitucional anteriormente pelo STF.

Conclusivamente, rememorando o problema de pesquisa proposto: “há um diálogo entre poderes em relação ao posicionamento adotado pelo STF na ADI 5543 e a posterior orientação da Anvisa que preconiza a manutenção dos critérios de inaptidão para doação de sangue por HSHs?”, Pode-se afirmar que inexiste um diálogo institucional, já que ao contrariar a decisão do Supremo Tribunal Federal a Resolução da Anvisa não demonstra motivação justificável para discordar do posicionamento do STF, assim como o mais atual posicionamento da Anvisa, o qual revogou o dispositivo já declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, não realiza um diálogo em si, mas sim o cumprimento de uma decisão judicial, a medida em que não se comunica de forma argumentativa com a decisão do STF ou mesmo a do próprio órgão em sentido oposto.

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(*) Nota del Editor: Este artículo fue recibido el 04 de diciembre de 2020 y su publicación fue aprobada el 07 de marzo de 2021.

(**) Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, na linha Dimensões Instrumentais das Políticas Públicas. Bolsista PROSUC/CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Lattes: http://lattes.cnpq.br/2400734786644430. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8298-5645. Correio electrónico: mariavalentina.23@hotmail.com.

(***) Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, na linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo. Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7125626353321424. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3192-659X. Correio electrónico: elizianefvargas@mx2.unisc.br.

(1) No campo da medicina a sigla HSH é utilizada para fazer referência aos homens que fazem sexo com outros homens. (Sangy, 2019, p. 31).

(2) No ano de 2002 o Brasil alterou suas políticas de doação autorizando a doação de sangue por HSHs, desde que nos últimos 12 meses não tivessem mantido relações sexuais homossexuais. (Sangy, 2019, p. 32).

(3) Conforme certidão de julgamento da ADI n. 5543/DF (Brasil, STF, 2020), votaram pela procedência da ação os Ministros Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Edson Fachin e as Ministras Carmém Lúcia e Rosa Weber. Assim, foram vencidos os Ministros Ricardo Lewandowsi, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e, parcialmente vencido, o Ministro Alexandre de Moraes.

(4) Importante ressaltar que não se pode falar em garantia à dignidade humana se não for ofertado ao indivíduo a possibilidade desse se desenvolver de maneira livre e autônoma (Bahia et al., 2018, p. 106).

(5) Interessante à crítica trazida por Naia (2015, p. 68) de que, mesmo que a igualdade tenha sido proclamada como um princípio universal, é mantido o padrão do universalismo europeu com uma sistemática negação da diferença, que se reflete na discussão sobre as uniões homoafetivas no Brasil, na qual “o padrão permaneceu intocável, mas é como se o sistema tivesse aberto um pequeno espaço para os homossexuais, no sentido de permitir que tivessem acesso a alguns direitos, convivendo sempre com o padrão e com o tratamento de inferioridade que dele advém, pela sua própria razão e ser”.

(6) Ainda hoje, no cenário da sociedade brasileira, há em relação à homossexualidade uma grande discriminação e preconceito, que acabam ocasionando a violação aos direitos humanos, assim como atingindo frontalmente os princípios da dignidade humana e da igualdade, visto que “homossexualidade não é doença, como muitos dizem erroneamente, e sim, uma orientação sexual que deve ser respeitada.” (Bahia et al., 2018, p. 110).

(7) Segundo Sangy (2019, pp. 41-42), no início da epidemia o HIV/AIDS foi denominado como a doença dos 5-H, referindo-se a pessoas Homossexuais, Homofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína) e Hookers (expressão da língua inglesa utilizada para denominar os/as profissionais do sexo), já que na época quase 100% dos casos eram diagnosticados em HSH, essas estatísticas foram se alterando com o passar do tempo e a epidemia passou por um processo de heterossexualização.

(8) A referida janela imunológica é um período em que já é possível que o indivíduo porte o vírus, porém, a produção de anticorpos se mantém tão baixa ao ponto de ser indetectável a existência do vírus durante esse período. (Sangy, 2019, p. 35).

(9) Bahia et al. (2018, p. 103), salienta que no vigente Estado Democrático de Direito a liberdade de escolha da orientação sexual por cada indivíduo é essencial para o seu desenvolvimento, bem como para a promoção da dignidade da pessoa humana não apenas como um princípio teórico como também prático.

(10) Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:

I - que tenha feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas ou seus respectivos parceiros sexuais;

II - que tenha feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais;

III - que tenha sido vítima de violência sexual ou seus respectivos parceiros sexuais;

IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes;

V - que tenha tido relação sexual com pessoa portadora de infecção pelo HIV, hepatite B, hepatite C ou outra infecção de transmissão sexual e sanguínea;

VI - que tenha vivido situação de encarceramento ou de confinamento obrigatório não domiciliar superior a 72 (setenta e duas) horas, durante os últimos 12 (doze) meses, ou os parceiros sexuais dessas pessoas;

VII - que tenha feito “piercing”, tatuagem ou maquiagem definitiva, sem condições de avaliação quanto à segurança do procedimento realizado;

VIII - que seja parceiro sexual de pacientes em programa de terapia renal substitutiva e de pacientes com história de transfusão de componentes sanguíneos ou derivados; e

IX - que teve acidente com material biológico e em consequência apresentou contato de mucosa e/ou pele não íntegra com o referido material biológico. (BRASIL, ANVISA, https://saude.rs.gov.br).

(11) Art. 25. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à proteção do doador quanto a do receptor, bem como para a qualidade dos produtos, baseados nos seguintes requisitos:(...)

XXX - os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco, incluindo-se:

a) indivíduos que tenham feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas ou seus respectivos parceiros sexuais;

b) indivíduos que tenham feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais;

c) indivíduos que tenham sido vítima de violência sexual ou seus respectivos parceiros sexuais;

d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes;

e) indivíduos que tenham tido relação sexual com pessoa portadora de infecção pelo HIV, hepatite B, hepatite C ou outra infecção de transmissão sexual e sanguínea ou as parceiras sexuais destes;

f) indivíduos que sejam parceiros sexuais de pacientes em programa de terapia renal substitutiva e de pacientes com história de transfusão de hemocomponentes ou hemoderivados (transplantes); e

g) indivíduos que possuam histórico de encarceramento ou de confinamento obrigatório não domiciliar superior a 72 (setenta e duas) horas, ou seus parceiros sexuais; (Brasil, Ministério da Saúde, https://bvsms.saude.gov.br).

(12) Trazendo uma respectiva histórica da vedação imposta aos homossexuais para o exercício da doação sanguínea, Cardinali (2017, p. 60) afirma que “A origem desta vedação se relaciona ao início da epidemia de AIDS, que atingiu em seus primeiros anos a população masculina homossexual de maneira muito mais pronunciada, a ponto de vir a ser conhecida como “peste gay” ou “câncer gay”. Em idêntico sentido, Séguin (2002, pp. 216-218) afirma que, “atualmente, a AIDS é a patologia que cria uma discriminação e provoca intolerância, ela cresce exponencialmente, já matou mais do que às duas guerras mundiais juntas.”. Diante disso, a autora assevera que desde a descoberta da doença, na década de 80, a AIDS já apresentava um grande fator de discriminação por ser associada as pessoas homossexuais, tanto que, inicialmente, a doença era conhecida como “câncer gay”.

(13) Como destaca Mendes (2008, p. 99), as teorias dialógicas “dividem-se em duas categorias gerais. A primeira propõe uma teoria da decisão judicial que leve em conta a interação com o legislador. Não se trata propriamente de um método de interpretação, mas de uma demanda de que a corte reconheça e participe do diálogo. É uma forma de compreensão normativa do seu papel. A segunda define o diálogo como produto necessário da separação de poderes, uma decorrência do desenho institucional, não necessariamente da disposição de qualquer dos poderes por “dialogar”. Nessa categoria, teorias são predominantemente empíricas, mas a fronteira entre argumentos positivos e normativos torna-se gradualmente nebulosa. Com freqüência (sic), proposições descritivas influenciam o próprio comportamento das instituições que participam do diálogo, o qual passa a ser uma razão invocada para a escolha decisória, como se verá no caso canadense.

A primeira, portanto, tem um caráter endógeno e a segunda aponta para o fenômeno exógeno, menos dependente da postura de cada instituição”.

(14) Como destacam Moraes & Leal (2020), as teorias deliberativas podem fornecer às teorias dialógicas algumas contribuições, como uma abertura a um debate racional, o fortalecimento de uma argumentação dialógica em que sejam apresentados pontos favoráveis e desfavoráveis ao posicionamento anterior, a definição de um procedimento que seja legítimo para a produção de acordos e a produção de melhores decisões e interpretações em razão da necessidade de justificação das decisões que são tomadas.

(15) Para uma leitura sobre as classificações das teorias dialógicas em exógenas e endógenas, veja (Mendes, 2008).

(16) Importante pontuar a ressalva apontada por Bateup (2005, p. 59), que destaca que “it will first be important to examine the extent to which these broad dialogic dynamics currently exist, before beginning to think about the best ways in which these systems can be modified or adapted to incorporate more completely this judicial role of facilitating broader constitutional discussion”, discussão essa que outorgaria ao Poder Judiciário um importante papel na construção de um diálogo ideal.