Acerca dos crimes de perigo abstrato-concreto na doutrina geral dos crimes de perigo(*)

About the abstract-concrete danger crimes in the general doctrine of danger crimes

Sobre los delitos de peligro abstracto-concreto en la doctrina general de los delitos de peligro

Dana Rocha Silveira(**)

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (São Paulo, Brasil)

Fernando Andrade Fernandes(***)

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (São Paulo, Brasil)

Resumo: Os crimes de perigo, em contrapartida aos delitos de dano, consistem atualmente em categoria dogmática responsável por suscitar amplas discussões no âmbito jurídico-penal. Nesse sentido, considerando a conjuntura geral em que eles se encontram inseridos, bem como as discussões acerca de sua necessidade e legitimidade, perseguiu este artigo o objetivo de promover uma análise sobre a propositura do modelo dogmático dos crimes de perigo abstrato-concreto enquanto instrumento eficaz e garantista de tipificação penal. Para uma efetiva abordagem do tema, adotou-se por referencial teórico a teoria dos bens jurídico-penais, além dos métodos dedutivo e dialético, utilizando-se principalmente da técnica de pesquisa bibliográfica, aliada à pesquisa jurisprudencial. No que concerne aos resultados obtidos, verifica-se a conclusão pela imprescindibilidade dos delitos de perigo à sociedade pós-moderna, bem como pela sua legitimidade, desde que embasados em lastro material mínimo. Ademais, especificamente quanto aos delitos de perigo abstrato-concreto, constatou-se que estes constituem modalidade autônoma e intermediária de perigo, apesar de ainda muito inexplorados, demandando aprofundados estudos na área, de modo a possibilitar sua correta aplicação.

Palavras-chave: Crimes de perigo - Perigo abstrato-concreto - Legitimidade - Materialidade - Estado Democrático de Direito - Eficiência e garantismo penal

Resumen: Los delitos de peligro, a diferencia de los delitos de daño, constituyen en la actualidad una categoría dogmática responsable de suscitar amplias discusiones en el ámbito jurídico-penal. En este sentido, considerando la coyuntura general en la que se insertan, así como las discusiones sobre su necesidad y legitimidad, este artículo persiguió el objetivo de promover un análisis de la proposición del modelo dogmático de los delitos de peligro abstracto-concreto como un efectivo instrumento y garante de la tipificación penal. Para un abordaje efectivo del tema, se adoptó como marco teórico la teoría de los bienes jurídicos y penales, además de los métodos deductivo y dialéctico, utilizando principalmente la técnica de la investigación bibliográfica combinada con la investigación jurisprudencial. En cuanto a los resultados obtenidos, se concluye que los delitos de peligro para la sociedad posmoderna son indispensables, así como legítimos siempre que se basen en un mínimo lastre material. Además, específicamente, en lo que respecta a los delitos de peligro abstracto-concreto, se constató que estos constituyen un modo de peligro autónomo e intermedio, aunque todavía en gran parte inexplorado; ya que se requiere estudios en profundidad en el área con el propósito de posibilitar su correcta aplicación.

Palabras clave: Delitos de peligro - Peligro abstracto-concreto - Legitimidad - Materialidad - Estado Democrático de Derecho - Eficacia y garantía penal

Abstract: Crimes of danger, unlike crimes of harm, currently consist of a dogmatic category responsible for provoking wide-ranging discussions in the criminal-legal area. In this sense, considering the general conjuncture in which they are inserted, as well as the discussions about their necessity and legitimacy, this article pursued the objective of promoting analysis of the dogmatic model of abstract-concrete danger crimes as a proposition of an effective and guaranteed instrument of criminal typification. For an efficient approach to the theme, the theory of legal good’s protection was adopted as a theoretical mark, besides the deductive and dialectical methods, using mainly the bibliographic research technique, combined with jurisprudential research. Concerning the results obtained, the verified conclusion is that the crimes of danger are indispensable to the Postmodern Society, as well as legitimate, provided they are based on minimal material reasoning. Furthermore, specifically regarding the abstract-concrete danger crimes, it was found that these constitute an autonomous and intermediate modality of danger, although still largely unexplored, requiring in-depth studies in the area, to enable their correct application.

Keywords: Endangerments - Abstract-concrete danger - Legitimacy - Materiality - Democratic State of Law - Penal efficiency and guarantee

1. Introdução

Os crimes de perigo, enquanto modelo dogmático de intervenção penal, suscitam notórias controvérsias desde sua concepção. Com efeito, enquanto os delitos de lesão exigem para sua consumação o efetivo dano ao bem jurídico tutelado, como ocorre com a vida no caso do homicídio, nos crimes de perigo a afetação demandada do bem jurídico protegido é diversa e não envolve lesão, mas mera colocação em perigo deste, ocasionando problemas de legitimidade que variam conforme a técnica legislativa envolvida.

Assim, acerca dos delitos de perigo concreto, estes contam com grande consenso doutrinário no sentido de que exigem para sua consumação a exposição concreta do bem jurídico a perigo, o que é verificado a partir de análise ex post da situação (Mendoza, 2001, p. 21)(1), gerando, portanto, menores dificuldades de legitimação à medida que pressupõem a análise dos elementos das circunstâncias de fato para sua imputação.

Não obstante, tendo em vista que essa categoria de delitos alegadamente não é capaz de fornecer respostas adequadas a todas as necessidades pós-modernas de criminalização, sobretudo por dificuldades probatórias, surge a modalidade do perigo abstrato, suscitando verdadeiras controvérsias. Nesse sentido, com menor consenso, mas de acordo com a maior parte da doutrina, esses delitos consistem na criminalização pelo legislador de condutas previamente consideradas perigosas, acarretando, portanto, uma presunção de perigo que não precisa concretamente ocorrer na situação de fato (Mendoza, 2001, p. 21)(2). Em outras palavras, a periculosidade da conduta não é analisada a partir dos elementos circunstanciais desta, mas decorre de uma ficção ou presunção legislativa.

Diante disso, é importante destacar que a diferença entre ambas as categorias de perigo não reside no nível de afetação do bem jurídico, dado que o perigo abstrato não pode ser considerado menos arriscado ao bem jurídico que o perigo concreto, mas na forma de afetação deste – ou seja, na técnica de tipificação (Mendoza Buergo, 2001, p. 18).

Ocorre que, por partir de elementos dogmáticos de menor concretude na avaliação da periculosidade da conduta, vez que esta consistiria em uma presunção, as questões de legitimidade suscitadas em relação ao perigo abstrato são muito mais profundas do que as proporcionadas pelo perigo concreto, gerando questionamentos sobre a possível violação de princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, como a intervenção mínima ou a lesividade. Em resumo: “los problemas de legitimidad surgen ante la posibilidad de incriminar hechos y llegar a imponer una pena aunque no muestren una peligrosidad suficiente que justifique la intervención penal” (Mendoza, 2001, p. 339).

Contudo, apesar das dificuldades relativas à sua legitimidade, tal categoria de delitos vem sendo cada vez mais privilegiada pelos legisladores, sobretudo em áreas cuja intervenção penal é produto das necessidades pós-modernas, como ocorre com o Direito Penal Econômico. Alguns autores chegam a defini-la até mesmo como premente necessidade da atual sociedade, dada a complexidade dos novos delitos, bem como a dificuldade probatória dela derivada (Kubiciel, 2017, p. 5)(3).

É justamente em meio a tal polêmica que surge a proposição dos delitos de perigo abstrato-concreto, enquanto categoria intermediária que seria capaz de suprir, em certa medida, as demandas das sociedades pós-modernas, sem se dissociar de elementos garantistas inerentes ao sistema penal contemporâneo. Com efeito, esta modalidade de delitos constitui o objeto de estudo do presente trabalho, de modo a se promover a análise de sua estrutura dogmática, bem como da utilidade político-criminal, com a finalidade de tecer conclusões acerca de sua viabilidade para o Direito Penal. Para tal, se utilizará dos métodos dedutivos e dialético, aliados às técnicas de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

2. Da imprescindibilidade dos crimes de perigo à sociedade contemporânea

A sociedade contemporânea é marcada por inúmeras características singulares que a distingue dos demais modelos societários anteriormente existentes. Com efeito, iniciado o processo na sociedade moderna, verifica-se na sociedade contemporânea uma acentuação do enfoque à racionalidade, ao progresso científico, bem como ao sistema econômico, ainda que em uma perspectiva reflexiva. Na condição de sociedade pós-industrial, sobressai-se também pela alta complexidade, refletida no processo de globalização que integra relevante parte das comunidades mundiais.

Nesse cenário, em meio a busca irrefreável pelo desenvolvimento, baseada na ampliação do conhecimento nas mais diversas áreas, a informação se tornou o componente essencial dos tempos atuais, controlando toda a estrutura social, desde o processo de formação de profissionais capazes até as maiores trivialidades cotidianas. Na fabricação em larga escala dos mais diversos bens e serviços, não poderia ser diferente. Contudo, tendo em vista o acelerado processo de produção pós-industrial destes, tem-se que, apesar da disseminação irrefreada da informação, o conhecimento acerca dos riscos gerados pelos projetos desenvolvimentistas não é capaz de alcançar a mesma velocidade de criação de tais projetos – o que acarreta a existência de uma sociedade em que se prolifera não só a informação, mas também elevados fatores de risco (Beck, 2010)(4).

Tais circunstâncias possuem notória influência sobre o Direito Penal contemporâneo à medida que este é chamado justamente a atender às demandas sociais mais urgentes, sanando-as (Fernandes, 2003, pp. 53-83)(5). Destarte, se antes se poderia tratar da existência de um Direito Penal tradicional, marcado pela existência de crimes essencialmente materiais e de resultado de lesão, como o roubo e o homicídio, concebe-se hodiernamente a existência de uma dogmática penal diferenciada, em que se busca interferir em âmbitos e esferas que antes dispensavam a atuação da norma penal, como é o caso da proteção ao meio ambiente ou aos sistemas financeiros, além do gerenciamento de riscos.

Todavia, em ordem a fornecer respostas adequadas às novas questões, faz-se necessária a utilização em larga escala de instrumentos e institutos penais antes pouco utilizados ou mesmo inexistentes. É o caso do modelo dogmático dos crimes de perigo, os quais, apesar de terem sido concebidos há anos, encontram-se em momento de proliferação tão acentuado que a discussão acerca de sua legitimidade, intimamente ligada à forma como são dogmaticamente estruturados, é colocada como uma das principais questões a ser respondida pelo Direito Penal moderno, originando um privilegiado objeto de estudo.

Nessa perspectiva, os delitos de perigo passam a ser utilizados de forma demasiada, abrangendo desde a criminalização de condutas nas quais existe relevante dificuldade probatória acerca de sua periculosidade, até aquelas nas quais não se tem qualquer noção sobre o potencial lesivo da ação – nestas se inserindo os delitos oriundos dos novos riscos gerados pelos processos produtivos. Destarte, havendo a disseminação de condutas arriscadas, das quais não se tem informações concretas relativas à sua lesividade, verifica-se que a intervenção penal através de dano seria ineficaz, visto que só penalizaria os riscos tornados em fato – restando como lacuna de punibilidade os casos em que o perigo não se transformou em lesão, mas poderia tê-lo feito.

Da mesma forma, com a necessidade de utilização da norma penal em novos âmbitos, faz-se necessária a ampliação dos interesses objeto de proteção penal, de modo que se passa a abarcar alguns bens que ainda não tinham sido elevados à dignidade penal ou, merecimento de pena (Fernandes, 2003, pp. 70-73). Trata-se aqui de interesses como o meio ambiente, a ordem econômica, as relações de consumo, dentre outros, os quais, justamente em virtude de sua inserção no âmbito de uma sociedade complexa e globalizada, constituem bens jurídicos amplos e abstratos, cuja demonstração de sua afetação é demasiado complexa e, muitas vezes, inviável, demando novamente a utilização do perigo – neste caso, em sua modalidade abstrata.

Outras esferas específicas de utilização da norma penal, como é o caso dos delitos de natureza econômica, trazem também necessidades particulares que ocasionam a utilização do modelo dogmático do perigo. Nesse sentido, nos termos do que defende Michael Kubiciel, os crimes econômicos envolvem, por natureza, notórias dificuldades probatórias, o que pode ser atribuído à sua complexidade, levando ao fomento dos crimes de perigo abstrato em ordem de evitar variados obstáculos suscitados às condenações (2017, p. 5). Assim, também a categoria dos crimes de perigo, por mais dogmática que pareça, pode perfeitamente ser inserida em um contexto iniciado nas últimas décadas do Século XX, e acentuado contemporaneamente, que consiste em uma aproximação teleológica entre Direito Penal material e Processo Penal, enquanto se procura uma complementaridade funcional entre ambos, ainda que, lastimavelmente, o reconhecimento desta ideia seja restrito até o momento (Fernandes, 2001)(6).

Por todos esses fatores, a sociedade pós-moderna não aparenta mais ser capaz de prescindir dos crimes de perigo e, principalmente, do perigo abstrato, visto que este se mostra mecanismo eficaz ao fornecimento de respostas adequadas às demandas sociais hodiernas, tratando-se da criminalização em esfera anterior à própria exposição dos bens juridicamente tutelados – ao contrário do perigo concreto. Apesar da sua imprescindibilidade, porém, há relevante controvérsia acerca da legitimidade de tal categoria dogmática em face de princípios fundamentais ao Estado Democrático de Direito.

3. Da legitimidade dos crimes de perigo em face de princípios fundamentais ao estado democrático de direito

Embora se tenha verificado a imprescindibilidade dos crimes de perigo à sociedade pós-moderna, é preciso ponderar que a flexibilização de critérios dogmáticos para atender a necessidades político-criminais não consiste em solução adequada no âmbito de um Estado Democrático de Direito e em face de princípios como a intervenção mínima, ao menos sendo necessária uma compatibilização entre momentos de funcionalidade e de garantia (Fernandes, 2001), de forma que o estudo mais aprofundado dos elementos dogmáticos do perigo abstrato e seus reflexos intrínsecos nas questões de legitimidade é medida que se impõe em ordem a fornecer resultados às amplas áreas em que o Direito Penal é chamado a atuar.

Nesse sentido, enquanto autores, como Günther Jakobs (2003, p. 25)(7), não encontram grandes dificuldades na legitimação nem mesmo do perigo abstrato, vez que, a partir da imputação normativa, embasada no funcionalismo sistêmico, dissocia completamente a função da norma com a proteção de bens jurídico-penais, atribuindo-a o objetivo de proteção da sociedade através da padronização de comportamentos, verifica-se que sob o enfoque da teoria de proteção dos bens juridicamente tutelados referida legitimação encontra, certamente, maiores dificuldades. Assim, há autores, como Silva Sánchez (2002, pp. 144-146), que, ao não entenderem pela estrita legitimidade desta categoria de delitos, realizam propostas de adequação, como é o caso da assertiva de um Direito Penal de duas velocidades(8).

Não obstante, objetiva-se demonstrar neste trabalho a perfeita adequação, por si só, desta categoria de delitos aos princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, ou seja, independe de adequações realizadas nos preceitos primários ou secundários do tipo.

Destarte, iniciando pelos delitos de perigo concreto, tem-se que nestes, conforme conceituação já apresentada, são analisados os elementos das circunstâncias de fato, a partir de exame ex post, para verificar se houve ou não a exposição a perigo do bem jurídico tutelado (Mendoza Buergo, 2001, p. 21). Dessa forma, a criminalização não parte de uma presunção, mas de uma constatação, estando intimamente ligada à observância de princípios como a intervenção mínima e a lesividade, dado que a utilização desta técnica de tipificação deve se dar apenas quando imprescindível. Ademais, o princípio da lesividade abarca não apenas condutas lesivas ao bem jurídico, mas também aquelas que sejam potencialmente capazes de causar lesões, de forma que, existindo análise ex post do perigo gerado, tal postulado encontra-se plenamente observado.

Em contrapartida, acerca do perigo abstrato, são suscitados maiores obstáculos à sua legitimação, vez que nestes o perigo consistiria em motivo do legislador para criminalização de condutas – e não elemento do tipo (Mendoza, 2001, p. 21). Assim, justamente para a tentativa de superação destes problemas de legitimação, a análise da estrutura dogmática desses delitos se revela imprescindível. Isso porque, de fato, a compreensão do perigo enquanto mero motivo do legislador não pode garantir o cumprimento de postulados essenciais como a lesividade, ocasionando notória inconstitucionalidade. O perigo abstrato, porém, vai muito além desta compreensão.

Conforme estudo desenvolvido por Mendoza Buergo, o perigo abstrato foi compreendido de diversas formas durante a história, sendo considerado delito propriamente de lesão, delito de desvalor do resultado ou mesmo delito de desvalor da ação (Mendoza, 2001, pp. 91-334). Nessa perspectiva, a posição que se elucida nesta análise como mais interessante decorre de um aperfeiçoamento da concepção originalmente apresentada por Jürgen Wolter. Para o autor, o perigo abstrato, para além de um desvalor da ação, apresenta também um desvalor de resultado, consistente na criação, ao menos imprudente, de um risco juridicamente desvalorado e adequado à lesão de um bem jurídico – referido desvalor do resultado, guardando relação com o bem jurídico protegido, não se confundiria, assim, com o desvalor da ação (Wolter, 1981 apud Mendoza Buergo, 2001, pp. 164-165). Nessa proposição, o perigo abstrato, apesar de não consistir em elemento normativo do tipo, não seria meramente motivo do legislador.

Tal posição encontrou inúmeras críticas ao longo da história. Nessa linha, Mendoza, apesar de ressaltar a importância de atribuir um conteúdo material ao perigo abstrato, conforme realizado por Wolter, entende que o enfoque ainda consistiria no desvalor da ação e não propriamente desvalor do resultado (Mendoza, 2001, p. 338). A atribuição de um conteúdo material ao injusto, mostra-se, assim, essencial. Tendo em vista, porém, que esse conteúdo possui forte ligação com o resultado de perigo gerado ao bem jurídico tutelado pela norma -e não a uma mera infração a determinada norma de conduta, por exemplo- não se poderia conceber tais delitos senão enquanto crimes de desvalor do resultado. Tanto é assim que o perigo e o dano só têm relevância jurídica quando relativos a bens jurídico-penais, valorando-se com diferentes intensidades resultados danosos e perigosos. Com efeito, segundo entendimento de José Faria da Costa:

(...) [para] a chamada escola de “Bona”, cujo ponto nevrálgico, neste particular, arranca da ideia de que o que é relevante, em termos jurídico-penais, em sede e comportamento típico, é o desvalor de acção, sendo o resultado (o desvalor do resultado) uma mera condição objectiva de punibilidade. Na verdade, partindo-se destes pressupostos -erróneos, quanto a nószz em que o resultado é totalmente irrelevante para a determinação do conteúdo do ilícito - típico, fácil é de perceber que tanto monta estarmos perante um resultado danoso como perante um perigoso: ambos serão ou desempenharão uma função de condição objectiva de punibilidade. Todavia, uma tal compreensão de ilícito penal é totalmente infundamentada, não só porque não corresponde ao valor ou correspondência ou verdade ontológicos que diz carregar, como, para além disso, não tem correspondência ou aderência às expressões normativas do ordenamento penal vigente (Costa, 1992, pp. 408-409).

Diante desta assertiva, a única forma possível de concepção dos delitos de perigo abstrato corresponde à sua compreensão como também delitos de desvalor de resultado. Nesse sentido, nesta categoria de crimes, apesar da presunção inicial do legislador acerca da periculosidade da conduta, seria necessária a comprovação não de que esta ocorreu em concreto, a partir de análise ex post, pois nesse caso se estaria diante do perigo concreto, mas de que poderia ter ocorrido, conforme exame ex ante, ou seja, em abstrato. Em face deste entendimento, a adequação desta categoria de delitos a postulados essenciais de um Estado Democrático de Direito perde sua controvérsia, vez que ainda devem ser utilizados como ultima ratio, bem como se impõe o exame acerca da periculosidade da conduta ao bem jurídico tutelado, ainda que de uma perspectiva ex ante.

Conclui-se, portanto, que a categoria dogmática do perigo não se apresenta como uma contradição ao postulado da intervenção mínima por si mesma, podendo vir a confrontá-lo a depender irrefutavelmente do contexto em que é empregada. Ou seja, se a adoção desta categoria de delitos consistir em único recurso minimamente eficaz de intervenção estatal, referidos crimes encontram-se amplamente legitimados em virtude de sua necessidade. A contrario sensu, se existem outros instrumentos capazes de fornecer respostas adequadas às demandas sociais, não se poderia admitir como legítimo o recurso a esta forma de delitos.

Em continuidade, considerando-se os princípios da racionalidade e proporcionalidade, a própria observância à máxima da ultima ratio conduz também à obediência a tais postulados, vez que, tratando-se de mecanismo subsidiário e necessário, a adoção de tipificações que, até certo ponto, poderiam flexibilizar garantias fundamentais encontram-se satisfatoriamente justificadas, bem como se mostram proporcionais.

No mesmo sentido, faz-se possível a legitimação destes modelos dogmáticos frente ao princípio da lesividade, segundo o qual não há crime sem haver lesão a bem juridicamente tutelado, vez que a mera criminalização de condutas após a materialização do dano não seria efetiva aos objetivos de prevenção de lesão da norma penal, de modo que a tipificação em momento anterior ao dano ou mesmo à própria exposição do bem jurídico visa justamente à coibição de lesões.

Assim, a partir deste caminho que conduz à legitimação da norma de perigo e, principalmente, do perigo abstrato, extrai-se condição precípua irrenunciável no que concerne à escolha, pelo legislador, da utilização deste modelo dogmático: sua imprescindibilidade. É nessa medida que a proposição de nova categoria de delitos, representada no perigo abstrato-concreto, poderia ensejar um Direito Penal ainda mais garantista, optando-se por este modelo intermediário de perigo nas situações que o comportariam, em detrimento do perigo abstrato fazendo nascer novas circunstâncias em que estes seriam prescindíveis.

4. Do modelo dogmático dos crimes de perigo abstrato-concreto

Visando à criação de modalidade (ainda) mais garantista que o perigo abstrato e, em simultâneo, mais funcional que o perigo concreto, foi concebida, assim, a modalidade dos crimes de perigo abstrato-concreto(9). Atribuída sua concepção à Schröder, segundo já informado, tratar-se-ia de categoria responsável por somar características tanto dos delitos de perigo concreto, quanto dos de perigo abstrato. Nesta, conforme entendimento do autor, a constatação do perigo se daria a partir de um critério de regras de experiência geral, considerando a maioria das condutas e não uma ação específica - dessa forma, haveria a abstração de certas circunstâncias concretas do fato. Ou seja, bastaria examinar as características que tornam a ação idônea à produção de um perigo ao bem jurídico, a partir de uma perspectiva ex ante, para se verificar a periculosidade da ação (Schröder apud Mendoza, 2001, pp. 38-42).

Se em um primeiro momento esta modalidade de delitos parece quase se identificar com o perigo abstrato, vez que se trata de um exame ex ante do perigo, partindo de aspectos gerais, a distinção - e o aumento das garantias penais - estaria na previsão do perigo enquanto elemento normativo do tipo - e não como mero motivo do legislador (Schröder apud Mendoza, 2001, pp. 38-42). Assim, segundo entendimento de Mendoza:

La indudable ventaja de esta modalidad delictiva es que al incluir elementos de peligrosidad real de la conducta en la descripción del tipo se evita el defecto principal de los delitos de peligro abstracto, esto es, el formalismo o automatismo de la constatación de su relevancia típica y de su contenido de injusto (Mendoza, 2001, p. 42).

O desenvolvimento da ideia desta categoria de crimes, porém, acabou gerando uma série de controvérsias jurídicas. Se por um lado autores como Mendoza Buergo adotam a concepção original (2001, pp. 38-52), outros, como Faria Costa, concebem a modalidade do perigo abstrato-concreto como aqueles “em que a prova da inexistência do perigo determina o não preenchimento do tipo” (Costa, 1992, p. 643). Neste último caso, trata-se, portanto, de um conceito excludente a partir do qual a conjectura inicial legislativa de periculosidade da conduta seria relativa, admitindo a análise, presumidamente ex post, por meio dos elementos do caso concreto, da existência de fatores eliminatórios da presunção inicial(10).

Diante destas proposições, opta-se pela assimilação de um conceito, mais próximo da concepção desenvolvida por Faria Costa, a partir do qual se evidenciam os principais elementos defendidos pelos autores para esta categoria de crimes. Ressalva-se que a adoção do conceito inicialmente apresentado por Schröder em sua íntegra não seria capaz de garantir a existência de um novo modelo dogmático funcional dos crimes de perigo, vez que guarda estrita semelhança com uma concepção garantista do próprio perigo abstrato.

Neste cenário, concebe-se a modalidade dos crimes de perigo abstrato-concreto como tipos penais intermediários nos quais, apesar da existência de presunção legislativa acerca da periculosidade da ação ou da exposição de determinado bem jurídico (característica do perigo abstrato), seria necessário demonstrar o condão da conduta para essa exposição nas circunstâncias do fato, utilizando-se de exame ex post (característica do perigo concreto). Não obstante, apesar de categoria intermediária, referidos tipos penais consistiriam em modalidade única, à medida que demandam análise ex post da ação, distanciando-se do perigo abstrato, bem como objetivam determinar, por meio deste exame, a mera aptidão da conduta à afetação de bens jurídicos, o que se distancia da demonstração da ocorrência de um perigo concreto de fato.

Com vistas a elucidar tal explicação e tomando como exemplo o art. 54, caput, da Lei brasileira 9.605/98(11), constata-se que prevê o tipo penal: “Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa”

Nos termos deste artigo, extrai-se, em um primeiro momento, a existência de criminalização em momento anterior à exposição do bem jurídico protegido, visto que se pune a conduta de “causar poluição de qualquer natureza”, presumindo-se nesta a lesividade ao interesse tutelado, independente de resultados concretos de afetação como, por exemplo, a criação de impactos em determinados ecossistemas. Ocorre que, posteriormente, há a previsão de que a poluição seja “em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana” ou à fauna e à flora, ou seja, exige-se que a conduta possua a aptidão de exposição do bem jurídico tutelado, mesmo que esta não ocorra em concreto. É exatamente por isso que não basta a realização de análise única e exclusivamente ex ante, mas ex post se faz necessário verificar a ausência de elementos que excluam a periculosidade, tornando a conduta inapta, o que se faz considerando o caso concreto.

Deste modo, sendo realizada a poluição de curso de água, por exemplo, é preciso que este tenha relevância para o equilíbrio do ecossistema da região e não que seja elemento isolado ou mesmo muito breve em determinada área desmatada, sem servir a qualquer vegetação, animal ou pessoa, pois, se assim o fosse, não seria adequado às finalidades da norma no caso dos crimes ambientais: a proteção do ecossistema. Dessa análise conclui-se, inclusive, que o perigo abstrato-concreto não poderia ser equiparado meramente ao perigo concreto, já que a demonstração exigida não consiste na efetiva exposição do meio-ambiente, mas única e exclusivamente do condão para a exposição deste, ou seja, da ausência de elementos que excluam o risco presumido pela norma penal.

No mesmo sentido, prevê o art. 42 da Lei 9.605 do mesmo diploma legal: “Fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar incêndios nas florestas e demais formas de vegetação, em áreas urbanas ou qualquer tipo de assentamento humano: Pena - detenção de um a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”. Tal tipo penal traz evidentemente a escolha do legislador ordinário pela utilização do perigo abstrato-concreto. Isso porque se criminaliza a conduta de soltar balões, presumindo-se a exposição do bem jurídico tutelado, porém esta precisa necessariamente possuir o condão de provocar incêndio nas diversas formas de vegetação ou áreas habitadas, o que é analisado posteriormente, principalmente a partir da ausência de elementos que excluiriam essa aptidão, como é o caso de balões soltos em região desértica sem quaisquer vegetações, ou em áreas cuja vegetação seja tão insignificante que não se poderia afetar o equilíbrio do ecossistema da região.

As semelhanças entre os diferentes modelos dogmáticos de perigo são, assim, notórias: o perigo abstrato-concreto, da mesma forma como ocorre com o perigo concreto, trata-se, em verdade, de elemento normativo do tipo, visto que exige interpretação valorativa por meio do aplicador da norma penal para verificar a ausência ou não do perigo considerando as circunstâncias do fato, examinando se a norma foi, deste modo, violada a partir de juízos avaliativos. Em direção contrária, há presunção pelo legislador no momento da tipificação da conduta acerca de sua lesividade, característica precípua do perigo abstrato.

Contudo, são evidentes, também, as divergências: enquanto no perigo concreto se examina a exposição do bem jurídico nas circunstâncias de fato, no perigo abstrato-concreto se verifica meramente a aptidão da conduta para exposição do bem jurídico. No mesmo sentido, havendo necessidade desta constatação em concreto, há clara discrepância com relação ao perigo abstrato.

5. Do perigo abstrato-concreto e seus impactos na aplicação prática dos tipos penais

Não obstante, a existência de características particulares e inerentes aos delitos de perigo abstrato-concreto, este modelo dogmático não vem sendo reconhecido de forma adequada pelos Tribunais Superiores brasileiros. É o caso, por exemplo, do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1.273.253(12), de Santa Catarina, julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, localizado em Brasília, em 26 de junho de 2018, de relatoria do Ministro Ribeiro Dantas.

Esse tratava da imputação a pessoa jurídica do crime previsto no art. 54, §2º e inciso V, da Lei brasileira 9.9605/98(13), o qual consiste no delito de poluição com aptidão para resultar em danos à saúde humana, à fauna ou à flora, pelo lançamento de resíduos em desacordo com as exigências legais. Nos termos do julgado, teria ocorrido o vazamento de óleo diesel, contaminando lençol freático com benzeno, produto cancerígeno, em níveis superiores aos permitidos em Resolução do CONAMA 420/09(14). A ação se deu em Florianópolis, em área de entorno de estação ecológica, por empresa de transporte que realizava o abastecimento de sua frota de ônibus.

Foi, assim, interposto Recurso Especial pela empresa ré, inconformada com a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que entendeu que, “o tipo penal do artigo 54 da Lei 9.605/98 é crime de perigo abstrato, que se consuma com a simples conduta de poluir, independentemente de qualquer resultado concreto à saúde humana”(15). Ademais, consagrou o delito também como crime formal.

A defesa sustentou, principalmente, a necessidade de que a conduta possuísse aptidão para causar danos à saúde humana, de forma que deveria ser constituída prova pericial específica nesse sentido. Alegou, ademais, que o risco não poderia ser presumido tão somente pela contaminação de lençol freático por benzeno em níveis superiores ao admitido em Resolução do CONAMA, especialmente porque teria fornecido prova de que este risco não existiria.

Em decisão monocrática, defendeu o relator que foi demonstrada a existência de contaminação em níveis superiores ao admitido pela legislação, de modo que esta situação seria apta e suficiente para caracterização do crime(16). Em sede de Agravo Regimental, novamente se negou provimento ao pedido, nos seguintes termos:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME AMBIENTAL. OMISSÃO NO ACÓRDÃO. INEXISTÊNCIA. OFENSA AO ARTIGO 54, § 2, V, DA LEI 9.605/98. NÃO OCORRÊNCIA. POLUIÇÃO. VAZAMENTO DE ÓLEO DIESEL. CONTAMINAÇÃO DO LENÇOL FREÁTICO COM BENZENO EM NÍVEIS SUPERIORES AO ACEITÁVEL PELA NORMA, DEVIDAMENTE DEMONSTRADA NOS AUTOS. PRODUTO CANCERÍGENO. RISCO À SAÚDE HUMANA COMPROVADO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. No que tange à alegada ofensa ao art. 1.022 do CPC, sob o argumento de que o tipo de perigo abstrato não dispensa a prova de risco de perigo, demandando a realização de prova específica, não se verifica-se a apontada omissão, uma vez que essa questão encontra-se suficientemente examinada no âmbito do acórdão que julgou os aclaratórios. 2. Quanto à suscitada negativa de vigência ao art. 54, da Lei 9.605/98, sob o argumento de que “é necessário que a poluição alcance níveis capazes de causar danos à saúde humana”, também não assiste razão aos recorrentes. Isso porque, consoante se depreende do excerto transcrito, no caso ora examinado, constatou-se, por meio da Nota Técnica do ICMBio, elaborada em 29/12/2011, que o lençol freático foi contaminado por produto carcinogênico, qual seja o benzeno, em concentrações superiores àquelas estabelecidas pela Resolução CONAMA 420/09, o que, por si só, é suficiente para causar danos à saúde humana, não sendo necessário, conforme destacado pelo Tribunal a quo, a demonstração de lesão efetiva aos moradores da região. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Ao estabelecer a desnecessidade da demonstração da aptidão da conduta para causar danos à saúde humana, seguiu a Turma o entendimento consagrado no Informativo 624 do referido Tribunal. Isso porque o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento anterior, realizado em 11 de abril de 2018, pela Terceira Turma, já havia decidido pela natureza formal do delito do art. 54, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana, sem resultado naturalístico efetivo, para caracterização do crime de poluição, motivo pelo qual dispensaria perícia:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DISSÍDIO CONFIGURADO. CRIME DO ART. 54 DA LEI N. 9.605/98. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. NATUREZA FORMAL DO DELITO. REALIZAÇÃO DE PERÍCIA. DESNECESSIDADE. POTENCIALIDADE DE DANO À SAÚDE. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. O delito previsto na primeira parte do artigo 54 da Lei 9.605/1998 possui natureza formal, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana para configuração da conduta delitiva, não se exigindo, portanto, a realização de perícia. Embargos de Divergência providos, recurso especial desprovido(17).

Ocorre que a “potencialidade de dano” à saúde, necessária para configuração da conduta delitiva, nos termos da decisão, guarda relação muito maior com a classificação dos crimes quanto ao resultado destes, relativo ao nível de afetação do bem jurídico -com a divisão em crimes de perigo e crimes de dano-, do que quanto à conduta – com a categorização em crimes materiais, formais e de mera conduta.

O tipo penal do art. 54 da Lei 9.605/98 trata-se, assim, de crime de perigo abstrato-concreto, já que a lesividade da conduta de poluir é, em um primeiro momento, pressuposta pelo legislador quando se tipifica a ação de causar poluição. Não obstante, tendo em vista que se exige, pelo menos, a potencialidade do dano à saúde humana, tais elementos podem ser ilididos no caso concreto se provado que não existe referida potencialidade, mesmo que a poluição tenha, como no caso em análise, atingido lençóis freáticos com substância em desacordo aos níveis legais admitidos pela legislação.

A realização de prova pericial para constatação da aptidão da conduta para causar danos à saúde humana revela-se, portanto, medida que se impõe. Destaca-se que não se exige no caso concreto a demonstração de efetiva lesão à saúde dos moradores da região, vez que referida exigência apenas caberia nos delitos de dano. No mesmo sentido, também não se exige a demonstração da exposição a perigo, nas circunstâncias de fato, da saúde humana, visto que esta é necessária apenas no perigo concreto. O que se demanda no tipo penal em análise é, única e exclusivamente, a demonstração da aptidão e suficiência da ação para exposição da saúde humana.

Assim, tendo em vista que no AgRg no AREsp de 1.273.253, a empresa alega a existência de prova nos autos de que a contaminação pelo benzeno, nos níveis em que foi realizada, não traria nenhum risco à saúde humana, teria sido necessária a realização de prova pericial para constatar sua lesividade, nos termos da análise dogmática realizada acerca do modelo dos crimes de perigo abstrato-concreto.

6. Conclusão

Em conclusão ao estudo desenvolvido, algumas considerações se fazem necessárias. Nesse sentido, verificou-se que a sociedade pós-moderna não pode de prescindir dos delitos de perigo por inúmeros fatores que lhe são inerentes, como a necessária e eficiente gerenciamento de riscos, a proteção de bens jurídicos amplos e abstratos, além da complexidade de determinadas classes de delitos, intimamente ligadas com os novos âmbitos de tutela do Direito Penal.

Diante de tal constatação, o estudo dogmático acerca da estrutura dos delitos de perigo, bem como a análise político-criminal de sua viabilidade, consiste em medida que se impõe em ordem a fornecer respostas adequadas às questões essenciais a que o Direito Penal é chamado a intervir. Objetivou o presente estudo demonstrar, assim, que apesar da existência de apenas duas categorias clássicas de perigo, externalizadas nos delitos de perigo abstrato e concreto, estas não são capazes de atender todas as demandas pós-modernas, de forma eficaz, porém dentro de e em observância a determinados limites dogmáticos, de modo que resta a admissão da existência de uma terceira categoria intermediária, consistente nos crimes de perigo abstrato-concreto.

Somando elementos das duas concepções clássicas de delitos, esta nova modalidade contaria tanto com uma presunção inicial acerca da periculosidade da conduta (aspecto do perigo abstrato), quando com exame ex post da potencialidade de ocorrência deste (aspecto do perigo concreto), unindo duas características essenciais à dogmática penal e resultando em tipos penais com aspectos próprios e únicos, aptos à solução de demandas que podem prescindir da utilização do perigo abstrato, ao mesmo tempo, em que necessitam de maior proteção do que aquela fornecida pelo perigo concreto. Destaca-se que não se pretende nesta investigação afirmar a inadequação do perigo abstrato aos princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, mas apenas defender sua utilização como ultima ratio, quando não for possível a adoção de outros mecanismos dogmáticos inerentes do Direito Penal para criminalização de condutas que sejam fundamentais à proteção de bens jurídicos.

Ocorre que, apesar de consistir em instrumento eficiente, esta nova modalidade de crimes não vem sendo utilizada de maneira adequada, ao menos no que concerne à jurisprudência brasileira, conforme demonstrado no julgado examinado, de forma que suas particularidades, as quais a divergem do perigo abstrato, são tornadas praticamente nulas – inclusive com o enquadramento de diversos tipos penais de perigo abstrato-concreto como simples crimes de perigo abstrato.

Assim, o aprofundamento no estudo da dogmática jurídico-penal, especialmente no que diz respeito aos elementos estruturais dos crimes de perigo abstrato-concreto, desenvolvendo análises científicas sobre o tema, ainda muito inexplorado, se revela necessário, visando aprimorar a aplicação prática desta modalidade de delitos, atualmente realizada de forma errônea e equivocada por muitos Tribunais, contribuindo, cada vez mais, para prolação de decisões justas e que estejam em consonância com os valores inerentes a um Estado Democrático de Direito.

Referências bibliográficas

Beck, U. (2010). Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade (1.a ed.). Editora 34.

Costa, J. (1992). O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas. Coimbra Editora.

Fernandes, F. A. (2001). O processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina.

Fernandes, F. A. (2003). Sobre uma opção jurídico-política e jurídico metodológica de compreensão das ciências jurídicas-criminais. Em M. da Costa, J. de Faria, A. Miranda & M. João (orgs.), Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias (pp. 53-83). Editora Coimbra.

Jakobs, G. (2003). Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional. Manole.

Kubiciel, M. (2017). Libertad, instituciones, delitos de peligro abstracto: ¿Un nuevo prototipo del Derecho penal económico?. InDRET: Revista Para El Análisis Del Derecho, 3. https://indret.com/wp-content/themes/indret/pdf/1315.pdf

Mendoza, B. (2001). Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto. Editorial Comares.

Silva, J. (2002). A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Revista dos Tribunais.

(*) Nota del Editor: Este artículo fue recibido el 29 de enero de 2021 y su publicación fue aprobada el 29 de marzo de 2021.

(**) Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Franca (2019 - atual). Desenvolve pesquisa em Direito Penal, com ênfase no estudo do Direito Penal Econômico. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5237-4221. Correo electrónico: danarocha@hotmail.com.

(***) Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1987), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1992), doutorado em Direito pela Universidade de Coimbra (2000) e pós-doutorado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (2011). Atualmente é professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área das Ciências Jurídico-Criminais, com ênfase em Direito Penal, Política criminal e Criminologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal Secundário (Direito Penal Tributário, Direito Penal Ambiental, Direito Penal das Relações de Consumo, Direito Penal Informático), Crimes de Corrupção, Crimes de Lavagem de Ativos Ilícitos, Tendências criminológicas contemporâneas, a influência da política criminal no Sistema Jurídico-Penal, Direito Penal e Constituição. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6801-3356. Correo electrónico: feranfer@uol.com.br.

(1) Nesse sentido, argumenta Mendoza Buergo que: “Por su parte los delitos de peligro concreto encuentran em la doctrina una configuración más uniforme y menos discutida en cuanto a las notas que la caracterizan. Así, la opinión más extendida es la que entiende que en este grupo el peligro sí constituye un elemento expreso del tipo, de modo que para considerar consumado el delito, el Juez ha de comprobar la producción de un peligro real para un objeto de la acción, ligado causalmente y objetivamente imputable a ésta (...)” (Mendoza, 2001, p. 21).

(2) Na mesma linha, Mendoza Buergo entende que nos delitos de perigo abstrato “(...) la opinión mayoritaria considera que el legislador, sobre la base de juicios de experiencia, selecciona formas de comportamiento ‘típicamente’ peligrosas para el bien jurídico correspondiente, sin que en el caso concreto haya de producirse una concreta puesta em peligro del objeto de la acción o del bien jurídico protegido por la norma” (Mendoza, 2001, p. 21).

(3) Argumenta Michael Kubiciel que: “Con todo, existen no pocos indicios que sugieren, por lo menos en el corto plazo, una tendencia hacia la ampliación del sistema de los delitos de peligro abstracto en el Derecho penal económico. (...) Se ha difundido esta tendencia junto con la hipótesis de que el legislador quiere eludir los problemas de prueba que plantean los delitos de resultado acudiendo a los delitos de peligro. Así, si pensamos en un ejemplo, podemos mencionar a la deslealtad funcional, un delito de peligro en el que se evitan los problemas para la determinación de la cuantía del daño o de la imputación del daño a una conducta ilícita concreta” (Kubiciel, 2017, p. 5).

(4) Referida sociedade foi denominada por Ulrich Beck como “Sociedade de Risco”, conforme conceito criado na década de 1980. Nesse sentido, veja-se Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade.

(5) Nessa linha, defende Fernando Andrade Fernandes que: “Com efeito, somente um sentido de via dupla, de interferência recíproca, pode satisfatoriamente explicar as relações existentes entre modelo de Estado e modelo de Direito Penal. Ou seja, não é somente em um sentido de mão única, do Direito Penal para o modelo de Estado, ou vice versa, que se forma a relação entre ambos, mas sim as implicações são recíprocas, senão vejamos. Sendo, numa acepção lata, o estado uma das projeções de uma determinada organização social, de natureza institucional por óbvio, e havendo um certo consenso quanto ao ser o Direito um dos instrumentos de viabilização da co-existência em sociedade, no interior do qual o Direito Penal deve ser o último recurso, apega-se em demasia a essa capacidade de conformação social das normas jurídico-penais, conduzindo não só ao equivocado entendimento acerca do sentido unidirecional acima apontado, como, o que é mais grave, ao dimensionamento desmensurado dessa capacidade. Ou seja, se nos é lícito reconhecer que, em certa medida, o Direito Penal é chamado a atuar na vida em sociedade, no limite do mínimo necessário para a proteção e segurança jurídicas por meio das normas, indevida, e desborda a sua capacidade, é a atribuição às normas jurídico-penais da missão de dirigismo social, como meio de uma qualquer engenharia ou tecnologia social” (Fernandes, 2003, pp. 53-83).

(6) Em relação ao Ordenamento Jurídico brasileiro, mas não só, isto resulta evidente nos modelos de diversificação processual, concebidos em torno à criminalidade de pequeno e médio potencial ofensivo e, como uma atualização a este respeito, pode ser citada a questionável adoção dos mecanismos de “delação premiada” no âmbito da criminalidade grave. Nessa linha, veja-se Fernandes, F. (2003). Sobre uma opção jurídico-política e jurídico metodológica de compreensão das ciências jurídicas-criminais. In Costa, M. et al. (Coord.), LIBER Discipulorum para Jorge de Figuereido Dias. Editora Coimbra.

(7) Com efeito: “Para administração estatal de uma sociedade mais ou menos complexa nunca bastou o estabelecimento de normas contra a lesão de bens jurídicos (com o que não se pretende afirmar que não seja possível descrever com grande acerto a maior parte de muitas sociedades por meio da metáfora do bem jurídico). Sempre existiu a necessidade, ademais, de que determinadas modalidades de comportamentos, consideradas por alguns cidadãos (é dizer, a partir de uma perspectiva descentralizada) como inócuas, fossem fixadas de modo centralizado como perigosas, sancionando a infração de normas (...)” (Jakobs, 2003, p. 25).

(8) Assim, dado que, com a expansão do Direito Penal, não se poderia prescindir de mecanismos eficientes de gestão de riscos, bem como capazes de promover respostas adequadas às novas demandas, propõe o autor, por um lado, a existência de normas penais amplas e maleáveis, mesmo que impliquem na flexibilização de garantias fundamentais, não lhes atribuindo, porém, sanção relativa à pena privativa de liberdade. Por outro lado, acerca do âmbito abrangido por um Direito Penal Mínimo, propõe o aumento da rigidez nos critérios de imputação, de forma a assegurar ambos os requisitos almejados: a eficiência das normas penais e sua adequação às garantias fundamentais (Sánchez, 2002, pp. 144-146).

(9) Quanto a nós, insista-se, na linha da necessária compatibilização, também no âmbito do Direito Penal material, entre aspectos de garantia e aspectos de funcionalidade, anteriormente mencionados.

(10) Sendo importante, recordar, mais uma vez, que esta perspectiva pode encontrar assento na ideia da complementariedade funcional antes mencionada.

(11) Veja-se a Lei em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm

(12) Veja-se em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=85082011&num_registro=201800793111&data=20180801&tipo=5&formato=PDF

(13) Nesse sentido, prevê a lei 9.605/98: “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 2º Se o crime: V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena - reclusão, de um a cinco anos”. Veja-se em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm

(14) Veja-se Apelação Criminal de n. 5032732-40.2014.4.04.7200/SC do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em https://jurisprudencia.

trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.hp?orgao=1&documento=9117339&termosPesquisados=IHBlbmFsIHByb2Nlc3N1YWwgcGVuYWwuIGNyaW1lIGFtYmllbnRhbC4gY29tc GV0ZW5jaWEgZGEganVzdGljYSBmZWRlcmFsLiBhcmVhIGRlIGVudG9ybm8gZXN0YWNhbyBlY29sb2dpY2EgY2FyaWpvcyA=

(15) Veja-se em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=83909493&num_registro=201800793111&data=20180601

(16) Veja-se em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=81403345&num_registro=201303738089&data=20180420&tipo=5&formato=PDF