Revista IUS ET VERITAS Nº 63, diciembre 2021 / ISSN 1995-2929 (impreso) / ISSN 2411-8834 (en línea)
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IUS ET VERITAS 63
https://doi.org/10.18800/iusetveritas.202102.010
Democracia, Constituição e Conflito: (Re)pensando
articulações a partir do agonismo
(
*
)
Democracy, Constitution and Con
f
l
ict: (Re)thinking articulations from the
agonism
Rudinei Jose Ortigara
(
**
)
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Paraná, Brasil)
Resumo: As sociedades democráticas contemporâneas liberais são marcadas pela
complexidade e pelo fato do pluralismo e visões diversas de bens. Como articulá-las,
e como darsoluçõesaoscon
f
l
itos? Aperspectiva predominante atual da teoria liberal o
faz por meio da proposta de possibilidades consensuais; mas desta perspectiva deriva
uma problemática: pode haver consenso sem prejuízos a práticas democráticas e à ação
política, que é marca essencial à sociedade plural, e que pressupõe a não exclusão do
outro e da igualdade como fundamento constitucional? Diante desta problemática se
impõe a necessidade de (re)pensar práticas de expressão do plural, não excludente do
con
f
l
ito, de aspectos articulatórios e do reconhecimento do diferente, vez que marca de
uma sociedade plural, e de seus re
f
l
exos na construção de um espaço público como
espaço de expressão do diverso e do con
f
l
ito, e, portanto, do democrático.
A hipótese é a de que a condição con
f
l
itiva pode e deve ser compreendida como
produtiva para o reconhecimento de expressões plurais tanto na política quanto no
direito, tanto na democracia quanto no constitucionalismo, e delas não ser extirpada,
mas transformada em agonismo, em acolhimento e expressão do plural.
O objetivo central é o de analisar como a concepção de agonismo, em Chantal Mouffe,
pode contribuir para compreensão de articulações e implicações necessárias entre
direito e política, constitucionalismo e democracia de modo a construir perspectivas
signi
f
i
cativas e produtivas. Assim, para o desenvolvimento da pesquisa, buscou-se
aportes na teoria política e na teoria constitucional, cuja fundamentação se deu,
especialmente, a partir de Chantal Mouffe, Post e Siegel, e Vera Karam de Chueiri. O
método utilizado foi o dedutivo, testando-se premissas para a veri
f
i
cação de possíveis
conclusões;atécnicadepesquisafoiabibliográ
f
i
ca, desenvolvidaa partirdepesquisas
em obras e artigos. Ao
f
i
nal da pesquisa a hipótese foi con
f
i
rmada.
Palavras-chave: Direito - Política - Constituição - Democracia - Constitucionalismo -
Con
f
l
ito - Agonismo
Abstract: Contemporary liberal democratic societies are marked by complexity and
the fact of pluralism and diverse visions of goods. How to articulate them, and how to
provide solutions to con
f
l
icts? The current predominant perspective of liberal theory does
so through the proposal of consensual possibilities; but from this perspective a problem
arises: can there be consensus without prejudice to democratic practices and political
(*) Nota da Equipe Editorial: Este artigo foi recebido em 1 de agosto de 2021 e sua publicação aprovada em 26 de novembro de 2021.
(**) Doutorando e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, Brasil. Especialista em Fundamentos de
Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharel em Direito e licenciado em Filoso
f
i
a pela FAE Centro Universitário.
Professor do Curso de Direito da FAE Centro Universitário, em Curitiba, Paraná, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1786-
6321. Correio eletrônico: rudi.ortigara@yahoo.com.br.
Democracia, Constituição e Con
f
l
ito: (Re)pensando articulações a partir do agonismo
Democracy, Constitution and Con
f
l
ict: (Re)thinking articulations from the agonism
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action, which is an essential mark of a plural society, and which
presupposes the non-exclusion of the other and equality as a
constitutional foundation? Faced with this issue, there is a need
to (re)think practices of expression of the plural, not excluding
con
f
l
ict, articulatory aspects and recognition of the different, as
it marks a plural society, and its re
f
l
exes in the construction of a
public space as a space for the expression of diversity and con
f
l
ict,
and, therefore, of the democratic.
The hypothesis is that the con
f
l
ictive condition can and should be
understood as productive for the recognition of plural expressions
both in politics and in law, both in democracy and constitutionalism,
and from them not being extirpated, but transformed into agonism,
acceptance and plural expression.
The main objective is to analyze how the conception of agonism,
conceived by Chantal Mouffe, can contribute to the understanding
of necessary articulations and implications between law and
politics, constitutionalism and democracy in order to build
meaningful and productive perspectives. Thus, for the development
of the research, contributions were sought in political theory and
constitutionaltheory,whosefoundationwasgiven,especially,from
Chantal Mouffe, Post and Siegel, and Vera Karam de Chueiri. The
method used was deductive, testing assumptions to verify possible
conclusions; the research technique was bibliographic, developed
from research in works and articles. At the end of the research, the
hypothesis was con
f
i
rmed.
Keywords: Law - Policy - Constitution - Democracy -
Constitutionalism - Con
f
l
ict - Agonism
1. Introdução
Complexidade e pluralismo de visões de bens diversas, e
muitas vezes con
f
l
itantes entre si, são marcas das sociedades
democráticas contemporâneas liberais. Compreender a
diversidade e a complexidade exige novas articulações voltadas
para a contingência, para as relações de poderes, nas quais
emergem expressões de pluralismo e de conflitos como
marcas ontológicas da realidade. Estas condições marcam e
se expressam também entre e através do direito e da política,
da constituição e da democracia; o problema é como e em que
medida articulações con
f
l
itivas podem ser produtivas tanto
para a política quanto para o constitucionalismo, promovendo
a possibilidade de expressão de demandas plurais e diversas,
de não exclusão do outro, e, portanto, da condição própria de
existências democráticas.
Perspectivas atuais, marcadamente as teorias de
cunho liberal, e mesmo neoliberal, tendem a compreender
tensões e con
f
l
itos como contrários a práticas democráticas
e constitucionais, afastando-os de suas fundamentações,
manifestações e decisões. Sob esta perspectiva, o presente
trabalho parte da premissa de que as teorias
decunholiberal,aoapostarnaracionalidade,
universalidade e em práticas consensuais,
não são su
f
i
cientes a promover práticas que
deem conta articulações satisfatórias, uma
vez que apostam na exclusão do con
f
l
ito e do
contingente, encaminhando-os para o privado,
e isolando-os de suas possíveis expressões
democráticas e constitucionais; mas isso não
se dá sem prejuízos ao político e ao direito, à
democracia e ao constitucionalismo, e suas
práticas correspondentes, vez que não levam
em consideração o contingente.
Daí ser necessário (re)pensar práticas de
expressão do plural, do pluralismo de con
f
l
ito,
de aspectos articulatórios, signi
f
i
cativos e não
excludentes do diferente, e de seus re
f
l
exos
na construção de um espaço público como
espaço de expressão do plural, do con
f
l
ito, e,
portanto, democrático, bem como do papel do
constitucionalismo neste processo. A hipótese
é a de que a condição con
f
l
itiva, marcante às
sociedades contemporâneas, pode e deve ser
compreendida como produtora e produtiva
para o reconhecimento de expressões plurais
tanto na política quanto no direito, tanto na
democracia quanto no constitucionalismo,
e delas não ser extirpada. Mas o con
f
l
ito
para ser produtivo, tanto no político quanto
no constitucionalismo, e suas interações
e articulações, deve ser compreendido a
partir da perspectiva do agonismo, como a
perspectiva trabalhada por Chantal Mouffe
na teoria potica, quando se expressa
como dissenso em práticas adversariais,
mas não excludentes do divergente e de
suas possibilidades de manifestação e de
legitimidadeederessigni
f
i
caçõescontínuas.
Assim, com aportes na teoria política e
na teoria constitucional, embora sabidamente
de fundamentações diversas, a proposta e
objetivo do trabalho é o de analisar como
articulações e implicações necessárias
entre direito e política, constitucionalismo e
democracia, que possuem no contingente
social o con
f
l
ito como base, numa sociedade
plural e diversa, devem ser pautadas pelo
agonismo, de modo a construir perspectivas
signi
f
i
cativas e produtivas para a construção
e perspectivação de práticas plurais, a partir
do reconhecimento do con
f
l
ito, do dissenso,
e do diverso, na realização de sociedades
Rudinei Jose Ortigara
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efetivamente democráticas e não excludentes. Neste sentido,
em um primeiro momento se apresentará perspectivas
da potencialidade ou da centralidade e da importância do
con
f
l
ito para a política e prática democráticas, a partir do
conceito de agonismo, desenvolvido por Chantal Mouffe.
Num segundo momento, se desenvolverá re
f
l
exões a partir
da prática do constitucionalismo enquanto responsividade
político democrática, sobretudo a partir da perspectiva do
constitucionalismo democrático; e, por
f
i
m, se apresentará
algumas, e posveis, articulações entre a prática do
constitucionalismo e do agonismo, sobretudo em relação ao
papel do dissenso em relação à a
f
i
rmação e reconhecimento
de práticas democráticas plurais.
Para a análise da proposta, e como fundamentação
teórica, toma-se como base principal a articulação das
teorias do pluralismo agonístico, em Chantal Mouffe, do
constitucionalismo democrático, em Post e Siegel, e do
Constitucionalismo radical, em Vera Karam de Chueiri.
Assim, iniciaremos a exposição da perspectiva do con
f
l
ito
em Chantal Mouffe, especialmente como importante para
expressão de práticas e articulações políticas e democráticas,
na perspectiva do agonismo, ou seja, no reconhecimento de
práticasadversariaisdodissenso;nasequência analisaremos
a proposta teórica do constitucionalismo democrático, com
destaque ao seu enfoque de que a interpretação judicial e
constitucional reconheça a pluralidade na promoção de
espaçospolíticos para manifestação do con
f
l
ito e do dissenso
em ambientes democráticos de pluralidade de valores. Por
f
i
m, analisaremos que num ambiente de pluralidade de valores
a perspectiva do agonismo pode e deve ser explorada como
fundamento da própria constituição e de sua relação com
expressões contingentes, plurais e democráticas, em uma
perspectiva tensional, para além de somente pautar práticas
interpretativas consensuais.
A perspectiva do con
f
lito em Chanta
2. Política, democracia e agonísmo:
l
Mouffe
espaços para o con
f
l
ito nas sociedades democráticas
contemporâneas? É possível uma sociedade democrática
paci
f
i
cada, na qual reina o consenso político? É possível extirpar o
con
f
l
ito das relações sociais e da condição do político? Qual a
(des)importância dele para o exercício da política e para a
construção de instituições sociais democráticas? En
f
i
m, o
que é uma sociedade democrática? É onde
imperam consensos racionais e universais e
o partilhamento de valores comuns, ou é um
espaço de legitimação de visões plurais e
con
f
l
itantes, e mesmo antagônicas entre si,
e possibilidades de escolha entre projetos
alternativos, tidos como legítimos? (Mouffe,
2003).
O conflito e o antagonismo o
condições inevitáveis nas democracias
liberais modernas, marcadas pelo
pluralismo de valores, e fazem parte de
sua natureza paradoxal. Essa condição
decorre da possibilidade de multiplicidade
de interpretações e articulações das próprias
lógicas constituintes da democracia liberal,
liberdade e igualdade. De um lado, a lógica
liberal é constituída pelo Império da lei, a
defesa dos direitos humanos e o respeito
à liberdade individual; do outro, a tradição
democrática, a
f
i
rma por ideais de igualdade,
identidade entre governantes e governados
e soberania popular
(1)
. Liberdade e igualdade
o lógicas spares e conflitantes, e,
portanto, tensionais, cuja relação guarda em
si mesma um paradoxo permanente (Mouffe,
2012), e não unicidade interpretativa ou
articulatória única. Tais lógicas podem ser
negociadas de diferentes formas, por via da
ação política.
A tradição política dominante,
marcadamente liberal, acredita haver
possibilidade de compatibilidade entre
liberdadeeigualdade,geralmenteapagando,
negando ou afastando o con
f
l
ito da esfera
pública,eapresentandoprocedimentostidos
como racionais, neutros e imparciais para
a solução de con
f
l
itos por via consensual.
A tensão conflitiva é tida como perigosa
para a democracia e para a política, pois
pertenceria ao “mais baixo e precário”
das pessoas, portanto, ao irracional, e ao
passional
(2)
, afastando-a da condição do
político e do exercício da política. A solução
seria o encaminhamento de antagonismos
(1)Mouffe chama a atenção para o fato de que “não existe uma relação necessária entre essas duas tradições distintas, somente uma
explicação histórica contingente. Através dessa indicação, o liberalismo se democratizou e a democracia se liberalizou. (...) o vínculo
entre liberalismo e democracia não se constitui em um processo
f
l
uido, foi resultado de diversos con
f
l
itos” (Mouffe, 2012, p. 20).
(2)Pois “a di
f
i
culdade dos pensadores democráticos liberais para compreender a proliferação atual dos particularismos e a emergência
de antagonismos supostamente “arcaicos” (Mouffe, 2003, p. 12).
Democracia, Constituição e Con
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ito: (Re)pensando articulações a partir do agonismo
Democracy, Constitution and Con
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e dos conflitos, geralmente derivados da pluralidade de
valores, para a esfera do privado, e substituídos, na esfera
pública, pelo domínio racional dos interesses e pela criação
de uma estrutura geral de identidades paci
f
i
cadas, uniformes,
imparciais e neutras (Mouffe, 2003), por via consensual,
racional e universalizante
(3)
. Esta lógica acaba por marcar a
organização social e suas instituições.
É assim que, por exemplo, autores representativos da
tradição política liberal, como John Rawls e Jürgen Habermas,
o
f
i
zeram
(4)
. O primeiro apresentando a ideia de um possível
“consenso sobreposto”
(5)
, e o segundo, com a ideia de uma
democracia procedimental
(6)
, e da ação comunicativa
(7)
. Da
mesma forma a chamada “Política da via”
(8)
também o
faz ao propor uma política de centro, apagando possíveis
divergências e con
f
l
itos na esfera pública. Embora variáveis
e de perspectivas diversas, as soluções apresentadas pelos
autores passam pela criação de consensos, via perspectivas
racionais e universalizantes, e na a
f
i
rmação da imparcialidade
e neutralidade como caminhos para a política, na esfera
pública, enquanto que o con
f
l
ito, o dissenso e o antagonismo
são encaminhados para a esfera privada.
Para Mouffe, ao relegarem o pluralismo e o con
f
l
ito para
o domínio do não público consensos racionais se mostram
problemáticos, pois isolam a política de suas
consequências; ou seja, acabam por eliminar
o especí
f
i
co da política (Mouffe, 2012) e não
reconhecer a natureza ontológica do político,
diminuindo a capacidade de contestação
(Mouffe, 2003). Mas ao invés de cumprir suas
promessas, o ideal da democracia como
realização de um consenso racional se constitui
enquanto instrumentodeexclusão
(9)
. O domínio
da política não é um terreno neutro, que
poderia ser isolado do pluralismo de valores,
ou em que soluções racionais e universais
poderiam ser formuladas (Mouffe, 2006), vez
que o con
f
l
ito, o dissenso e o antagonismo são
condições ontológicas do político, e, portanto,
fundamento das relações humanas e do social.
Neste sentido, um paradoxo constituinte da
democracia liberal, que é a impossibilidade de
estabelecimento de consensos permanentes,
ou extinção de con
f
l
itos interpretativos, sobre a
articulação entre liberdade e igualdade. Mas a
democracia liberal não precisa ser descartada,
e sim ressigni
f
i
cada por novos caminhos para
superá-la
(10)
.
(3)Agrande questão é que, historicamente, observa-se uma tentativa constante de erradicar a diferença e o con
f
l
ito, considerando-os
como elementos ameaçadores do espaço democrático. Grande parte dos esforços teóricos concentram-se na criação de métodos,
procedimentos e instituições que a
f
i
rmam a possibilidade de um consenso
f
i
nal e racional, formulado por pessoas razoáveis. Ou
seja, quem oferece as condições dissenso não é tido como razoável e racional. O desacordo é quali
f
i
cado como uma anormalidade
presente na ordem, contido fora do pacto consensual e constitucional” (Faller, 2020, p. 23).
(4)Insere-se apenas ideias gerais dos autores citados, não aprofundando em maiores detalhes sobre seus conceitos teóricos tendo
em vista a limitação de páginas do presente artigo.
(5)O objetivo de Rawls é proporcionar um consenso moral, ainda que mínimo, sobre os fundamentos políticos de uma sociedade bem
ordenada. Seu liberalismo político propõe de
f
i
nir um núcleo moral que especi
f
i
que os termos em que as pessoas com diferentes
concepções do bem possam viver juntas em associação política. É uma forma de entender o liberalismo que é compatível com
o feito do pluralismo e com a existência de um desacordo moral. Para aprofundamento veja a seguinte obra do
f
i
lósofo Rawls, J.
(2002). Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes.
(6)Apartir de um aspecto normativo da racionalidade procedimental, Habermas procura estabelecer e justi
f
i
car um vínculo entre valores
liberais e democráticos, ao mesmo tempo que refuta a perspectiva de existência de uma natureza contraditória da democracia
liberal. Nesse sentido, as instituições democráticas possuem legitimidade a partir do momento em que as decisões são tomadas de
um ponto de vista imparcial, ou seja, que leve em consideração o interesse de todos. Isso é particularmente marcante na seguinte
obra: Habermas, J. (2001). Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoria del
discurso. Editorial Trotta. Por isso, para aprofundamento de tal perspectiva, veja a citada obra.
(7)“Embora as suas soluções sejam distintas, compartilham da crença de que através dos adequados procedimentos deliberativos deveria
ser possível superar o con
f
l
ito entre os direitos individuais e as liberdades, por um lado, e as demandas de igualdade e Participação
Popular por outro. Nenhum deles é capaz de oferecer uma solução satisfatória, já que um e outro termina um privilegiando uma
dimensão sobre a outra: o liberalismo no caso de Rawls, e a democracia no caso de Habermas” (Mouffe, 2012, p. 25).
(8)Está é a proposta, por exemplo de Antony Giddens. Para aprofundamento veja Giddens, A. (1999). A terceira via: re
f
l
exões sobre
o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Record.
(9)“Em relação a teoria democrática dominante - é incapaz de proporcionar as ferramentas necessárias para levar a cabo sua própria
realização - o modelo de consenso sobre a democracia que informa tanto as teorias da democracia deliberativa como as propostas
em favor de uma política de terceira via é incapaz de aprender a dinâmica da política democrática moderna, que é o que subjaz
a confrontação entre os componentes do binômio Liberal democrático. em outras palavras, é a incapacidade dos teóricos e os
políticos Democráticos para reconhecer o paradoxal cuja expressão é a política Liberal democrática o que se encontra na origem
de sua equivocada em fase no consenso e o que sustenta sua crença de que o antagonismo pode ser erradicado. É este dé
f
i
cit
que impede a elaboração de um modelo adequado de política democrática” (Mouffe, 2012, p. 23).
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A proposta é o modelo agonístico de democracia, ou
pluralismo agonístico
(11)
, capaz de apreender a natureza
conflitiva e antagônica do político, e de promover sua
articulação democrática e tensional entre liberdade e igualdade,
a partir do reconhecimento do pluralismo de valores. Para
esclareceracompreensão daproposta,Mouffeapresentauma
distinção entre “o político” e “a política”. “O político” se refere
à dimensão do antagonismo, inerente às relações humanas, e
que pode assumir formas muito diferentes e emergir em
relações sociais diversas. O político é fundante da realidade,
e as relações humanas estão constituídas e perpassadas pelo
antagonismo. E “a política” se refere ao conjunto de práticas,
discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa
ordem e organizar a coexistência humana em condições que
são sempre potencialmente con
f
l
ituosas,porque afetadas pela
dimensão do “político” (Mouffe, 2003). A política consiste na
busca tensional pela criação de uma unidade em um contexto
de con
f
l
ito e pluralidade de valores ao tentar conter o potencial
do antagonismo que existe e marca as relações humanas,
transformando-o em agonismo (Mouffe, 2006).
Como questão de base, em si mesma “a democracia implica
em ambiguidade, pois pretende fazer coexistir opiniões e
interesses plurais e con
f
l
itivos”; sua razão de ser pressupõe a
existência do pluralismo (Châtelet & Pisier-Kouchner, 1985, p.
172). A política pretende ser uma “ordem” ou “contenção” ao
político, mas sem implicar em estabelecimento de um consenso
de
f
i
nitivo,masprovisório,porqueaspráticassociaisoplurais
e marcadas pelo antagonismo, concernente à própria natureza
do político, e este não é apreensível ao
f
i
xo ou objetivo, ou
seja, “não é algo que tem um lugar especí
f
i
co e determinado
na sociedade e que todas as relações sociais podem se tornar
o locus dos antagonismos políticos” (Mouffe, 2003, p. 13).
Qualquer consenso que pretenda ser de
f
i
nitivo acaba por
negar a pluralidade, inerente ao político, e, portanto, acaba
por se tornar ato autoritário e excludente; além de estabelecer
determinadas perspectivas que são tomadas como válidas e
corretas, em detrimento daquelas consideradas inválidas e
incorretas, cuja consequência é igualmente a exclusão
(Mouffe, 2005). Ante o antagonismo e a pluralidade de
valores que compõem a democracia liberal é necessário
repensar a perspectiva política democrática, articulatória e
não excludente.
O papel da política passa a ser a criação
de unidade marcada em um contexto de
antagonismos e con
f
l
itos, mas compatível
com a democracia. Ela está ligada a
práticas de transformação do antagonismo
em agonismo (Mouffe, 2006); ou seja, o
antagonismo é marcado pela perspectiva
de estabelecimento de luta entre inimigos;
já o agonismo se caracteriza pela luta entre
adversários, que são tomados como legítimos
dentro da arena e comunidade política, cujas
visões divergentes não podem ser eliminadas,
e embora discordantes seu direito de defender
ideias (Mouffe, 2006) diversas não pode ser
tolhido. A política agônica cria, assim, uma
hegemonia, a partir de articulações de poder,
transpassadas pela contingência, e que cria
um “nós” em relação a um “eles”. Embora a
existência e a construção da fronteira nós/
eles, o “eles” não é tomado como inimigo, a
ser eliminado do jogo democrático; embora
com perspectivas divergentes da hegemonia
dominante, o “eles” é reconhecido como
opositor legítimo, do qual não se concorda,
mas se mantém uma relação de dissenso
e lhe é assegurado o direito à divergência.
Portanto, a comunidade política é a arena
onde a convivência democrática e não
excludente de adversários
(12)
.
Como dito, a construção da fronteira
“nós” corresponde ao estabelecimento de
uma hegemonia dominante, o que signi
f
i
ca
atos de exclusão em relação a possibilidades
conflitivas de interpretação e articulação
diversas dos princípios ético-políticos da
liberdade e igualdade, mas não de sua
exclusão da arena e comunidade política,
que o estabelecimento de uma hegemonia
representa a opção por determinadas
perspectivas signi
f
i
cativas e a exclusão das
demais potenciais; embora estas continuem
a existir na configuração do “eles”. E a
(10) Ademais, Kozicki complementa que “implícita nesta a
f
i
rmação está a ideia de que não é possível encontrar princípios mais radicais de
organização de qualquer sociedade do que aqueles consubstanciados nos princípios liberais de igualdade e liberdade, ou seja, a
a
f
i
rmação de que todos os indivíduos são livres e iguais” (Kozicki, 2000, p. 109).
(11) Cita-se as duas nomenclaturas, pois em suas primeiras obras Chantal Mouffe denomina sua proposta como modelo agonístico e
democracia, e em suas obras posteriores passa a utilizar a nomenclatura de pluralismo agonístico.
(12) “Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão
compartilhadaaos princípios ético-políticos dademocracialiberal: liberdade eigualdade. Discordamos, porém, em relaçãoaosentido
e à implementação dos princípios e não se pode resolver tal desacordo por meio de deliberação ou discussão racional” (Mouffe,
2006, p. 174).
Democracia, Constituição e Con
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ito: (Re)pensando articulações a partir do agonismo
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serãosempreprovisóriaseparciais.Qualquer
possibilidade e tipo de acordo ou consenso
passa antes pelo “consenso” quanto a formas
de vida, que é marcada pela ausência de
fechamento último, ante a diversidade e
pluralidade, portanto, pelo dissenso.
É neste sentido que não é possível uma
separaçãoestritaentreaspectossubstanciais
e procedimentais (Mouffe, 2012). Mesmo
os procedimentos, sobretudo no campo da
política, e aspectos institucionais, implicam
em compromissos éticos substanciais, e não
podem se desenvolver adequadamente se
não estiverem sustentados por uma forma
especí
f
i
ca de ethos político.
A legitimidade de determinada ordem
política deriva do fato de que se tenha
adesão a ela, o que se mais de forma
apaixonada e afetiva do que racional, e a
partir de articulações de poder. É ela uma
hegemonia. Constitui as próprias identidades
políticas e coletivas pela adesão à perspectiva
hegemônica (Mouffe, 2003), mas em um
terreno precário e vulnerável, portanto, não
de
f
i
nitivo e provisório, pelo fato de ser ela
marcada pelo agonismo. o reconhecimento
do outro, do “eles, do adversário como legítimo
na comunidade política, cujas perspectivas,
embora não hegemônicas, são legitimas, e
com direito a defendê-las
(13)
.
Como os consensos são provisórios,
e abertos ao fato da pluralidade, diversas
formas interpretativas e de articulações
significativas atribuídas à liberdade e
igualdade, são promovidas como legítimas
e como equivalentes e não hierarquizadas
(Mouffe, 2003). Daí que a democracia deve
ser entendida a partir de sua radicalidade e
pluralidade, a partir da perspectiva agonística.
E que “as relações de poder são constitutivas
do social, então a questão principal da política
democrática não é como eliminar o poder, mas
como constituir formas de poder compatíveis
com valores democráticos” (Mouffe, 2003,
p. 14). E essa perspectiva agonística, que é
marca da política, perpassa as práticas sociais
e as instituições políticas.
estes é dado o direito de defender tais posições, embora não
hegemônicas, mas impossível de ser apagada ou eliminada.
Assim, a fronteirização “nós”/“eles” não se constitui em
prática totalizante, ou imposição de uma ordem autoritária, e
excludente de possibilidades interpretativas diversas dos
princípios ético-políticos da democracia liberal. “O consenso
existe como resultado temporário de uma hegemonia provisória,
como estabilização do poder e que ele sempre acarreta alguma
forma de exclusão” (Mouffe, 2006, p. 174). As relações sociais
são marcadas pelo poder encarnado, e são as articulações
entre as relações de poder que constroem uma determinada
hegemonia, com estabelecimento de certos consensos,
mas sempre provisórios, ante a possibilidade de abertura
signi
f
i
cativa pela pluralidade de valores presente na arena
política. A confrontação agonística é a condição de existência
da democracia, e perpassa as instituições democráticas.
O consenso, no caso da construção de uma hegemonia,
está fadado a ser con
f
l
ituoso diante das muitas e con
f
l
itantes
interpretações acerca dos princípios ético-políticos da
democracia liberal. Isso o passa pela condição de
isolamento de uma em detrimento de outra; nem mesmo por
práticas racionais e universais. Ao contrário, tal tensionalidade
deve ser articulada a partir da contingência, dos tipos de
práticas, nas relações concretas; como as hegemonias
são provisórias, e não a possibilidade de consensos
permanentes, igualmente o poder, marca das relações sociais,
não pode ser localizado em determinado ente, indivíduos,
ou substância metafísica, mas é internalizado e deslocado
para as relações sociais, e suas formas de articulação. Isso
leva à necessidade de negar a possibilidade de que tanto os
indivíduos, quanto as práticas sociais, e instituições sociais,
possam ter qualquer essencialismo, valor transcendental, ou
aspecto metafísico que os fundamente ou lhes conceda uma
condição
f
i
xa e imutável.
De igual forma, o real, a contingência, e as articulações
signi
f
i
cativas não podem ser aprisionadas por perspectivas
totalizantes e racionalizadas, na tentativa de um consenso
permanente, pois qualquer prática não pode ser signi
f
i
cada
descolada da dinâmica e articulação ligada ao contingente, à
variabilidade e devir do real; está dinâmica é marcada é permeada
por contradições, afetos e paixões, envolvidos nas várias
possibilidades dearticulaçãoda política(Mouffe, 2012).Essum
fato presente nas modernas sociedades plurais e democráticas,
mas que sempre foi negada pela tradição ocidental.
Isso significa que mais do que fundamento racional,
possíveis práticas e articulações hegemônicas e consensuais
são marcadas pela adesão afetiva e apaixonada, e como tal,
(13) “A democracia não exige uma teoria da verdade, nem noções como a de validade incondicional e universal, senão um punhado de
práticas e de iniciativas pragmáticas orientadas a persuadir pessoas para que amplie a gama de seus compromissos ante os
demais, para que construa uma comunidade mais inclusiva” (Mouffe, 2012, p. 80).
Rudinei Jose Ortigara
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IUS ET VERITAS 63
Ademais, e com base na análise teórica realizada, Mouffe
identi
f
i
ca que na atualidade se vive uma apatia em relação à
política nas sociedades democráticas liberais, pois o papel
desempenhado pela esfera pública política está se tornando
cada vez mais irrelevante e sendo substituído por práticas de
caráter consensual.
Neste sentido, aponta que possíveis soluções para con
f
l
itos
e dissensos, característicos à política, são conduzidos cada vez
mais ao setor jurídico, e “as decisões políticas são encaradas
como se fossem de uma natureza técnica e mais bem resolvidas
por juízes ou tecnocratas” (Mouffe, 2003, p. 17), e que suas
decisõesseriamacompanhadaspelamarcadaimparcialidade.
Há um peso na lei e no sistema judiciário como responsáveis
por organizar as relações sociais e dar soluções consensuais
para a solução de con
f
l
itos. Mas esta perspectiva não vem
acompanhada sem o afastamento da política, acabando por
prejudicar a democracia ao privilegiar consensos e silenciar e
apagar vozes e interpretações dissidentes.
Mas e se ao invés de privilegiar a imparcialidade e de
silenciar con
f
l
itos e dissensos as decisões e interpretações
legais, sobretudo as constitucionais, fossem capazes de avivar
aparticipaçãopolítica, promovendoespaços para manifestação
do con
f
l
ito e do dissenso e a luta pela prevalência de pluralidade
de valores? Há uma tensão entre política e direito, entre uma
potencial abertura e um potencial fechamento, que deve
ser explorado, e inicia-se tal perspectiva a partir da análise
da proposta do Constitucionalismo Democrático, cujos
fundamentos serão expostos a seguir.
3. Constitucionalismo e
O con
f
lito no constitucionalismo
responsividade político-democrática:
democrático
Embora teorias em campos diversos, a democracia radical
ou pluralismo agonístico, no campo da teoria política, e
o constitucionalismo democtico, no campo da teoria
constitucional, ambas reconhecem a perspectiva do con
f
l
ito
e do dissenso como fundamentais para a promoção e o
reavivamento da política em sociedades democráticas liberais.
Assim, é importante perceber que o reconhecimento
de uma interessante perspectiva agônica que fundamenta
tanto a política quanto o direito, tanto a democracia quanto o
constitucionalismo, marcada por desacordos persistentes, e
impossibilidade de fechamentos interpretativos de
f
i
nitivos
(Post, 2010). O foco do Constitucionalismo
Democrático não está propriamente na
jurisdição constitucional, na perspectiva
consensual, superior e de fechamento
da interpretação da decisão, mas na
articulação entre direito e política, entre
constitucionalismo e democracia, numa
sociedade plural e heterogênea, na forma
com que o fechamento interpretativo dado
pelas cortes pode ser compreendido não
como de
f
i
nitivo, mas como possibilidade
de fomentar responsividade político-
democrática, em diversidades de con
f
l
itos
políticos sobre a interpretação constitucional,
contribuindo para a coesão social e a própria
democracia (Post & Siegel, 2007), bem
como para a a
f
i
rmação da legitimidade da
constituição.
Conforme abordado na perspectiva
anterior, a teoria política de Mouffe destaca
a impossibilidade de consensos racionais
de
f
i
nitivosefechamentos
f
i
naisparacon
f
l
itos
no campo da ação política. As sociedades
contemporâneas são caracterizadas pela
pluralidade de valores, legítimos e equivalentes
entre si. Essa condição é condição própria da
democracia e implica no reconhecimento
da abertura de sentidos para a viabilização
de práticas político-democráticas, e para
a abertura de significações a partir da
pluralidade e perspectivas valorativas, numa
articulação entre liberdade e igualdade.
Embora a potencial abertura infinita de
sentido, bem como do caráter relacional e
contingente das identidades políticas, se
faz necessário algum tipo de fechamento,
mesmo que parcial e provisório, que viabilize
a convivência social e que faça com que a
democracia possa ser vivenciada a partir
da perspectiva do reconhecimento da
pluralidade que lhe é inerente, para não
signi
f
i
car atos de exclusão ou de fechamento
da ação política; e esse fechamento pode ser
assumido pelo direito e sua interpretação,
enquanto instrumento viabilizador da própria
democracia
(14)
.
(14) “Não é possível uma abertura total, sob o risco de se comprometer os princípios básicos constitutivos da sociedade política. A
abertura, a contingência e o reconhecimento do outro são possíveis a partir de um lugar comum, de um certo fechamento e
institucionalização de algumas regras. (...). É precisamente pela necessidade de se estabelecer um certo fechamento que o direito
assume umimportante papel no sentido de se tornaruminstrumento viabilizador-ou um dosinstrumentos-da democracia(Kozicki,
2004, p. 145).
Democracia, Constituição e Con
f
l
ito: (Re)pensando articulações a partir do agonismo
Democracy, Constitution and Con
f
l
ict: (Re)thinking articulations from the agonism
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IUS ET VERITAS 63
participam diretamente de suas perspectivas
e matrizes teóricas; elas são afastadas de
uma “teoria pura do direito”, ou mesmo, e
embora reconhecidas como existentes, são
relativizadas na perspectiva do “direito como
integridade”. No caso de Kelsen, este buscou
estabelecer uma ciência do direito, cujo
postulado metodológico toma a realidade
jurídica de forma objetiva, ou seja, afastada
de problemas valorativos e desvinculada
da política, pois estes possuem elevada
carga afetiva
(16)
. Dworkin, embora mais
abrangente em relação ao reconhecimento
de certa moralidade e de uma comunidade
de princípios, e correspondente perspectiva
política, a questão interpretacional do direito
também pressupõe certa superioridade de
um judiciário independente, e visto como
o correto intérprete da moralidade política
de uma comunidade, bem como construtor
de uma “resposta certa”, na integridade do
direito, o que, na prática, deixa pouco espaço
para a arena política (Mouffe, 2003)
(17)
.
Em b o r as ej ae sp e f i c oao
constitucionalismo, bem como ao direito,
um certo fechamento e uma limitação
à democracia e ao poder constituinte,
mantendo entre ambos, democracia e
constitucionalismo,umainerradicáveltensão,
tal fechamento “será sempre provisório e
tenso” (Chueiri, 2013, p. 28). Diferentemente
das perspectivas teóricas dominantes, é
necessárioreconheceratensionalidade,bem
como de que uma perspectiva relacional
e responsiva entre constitucionalismo, seus
sentidos e interpretações, e a política; que
se autoimplicam, sem que isso signi
f
i
que
juridicizar o espaço político e nem politizar o
direito (Kozicki, 2004), mas no reconhecimento
de que o con
f
l
ito entre ambos é inevitável,
e positivo, e que certos fechamentos
interpretativos devem ser provisórios e
a
f
i
rmadores da legitimidade de horizontes
de sentidos constitucionais. A perspectiva
O ponto está em que tipo de fechamento o direito, e sua
interpretação e aplicação, podem oferecer, bem como qual o
papel institucional, e mesmo interpretativo, nesta delimitação, e
sua relação com práticas democráticas, de modo a não invalidar
aaçãopolítica.Seé umaperspectivadesupremaciajudicialou
normativa, ou espécie de “última palavra”, com encerramento
de continuidade de possíveis interpretações conflitantes, a
partir de perspectivas universalizantes e racionalizadas,
procedimentais e consensuais, ou se se constitui enquanto
fechamento provisório e relacional, que embora reconheça a
prevalência de determinados entendimentos em detrimento
de outros não se constitui em prática de exclusão, mas de
determinadas eleições signi
f
i
cativas, sem que isso signi
f
i
que a
exclusão de outras e de perspectivas interpretativas diversas,
mantendo abertura de possibilidade de questionamentos e
con
f
l
itos por indivíduos que discordem dela, geralmente de
forma afetiva e passional, e de fomento de dissensos via
práticas políticas e reconhecimento de pluralismo de valores.
Conforme comentado no primeiro ponto deste trabalho, a
teoria política dominante, o liberalismo, apostou na composição
dos conflitos via práticas consensuais, apresentando
procedimentos tidos como racionais, neutros e imparciais para
a solução de con
f
l
itos, afastando estes da esfera pública. Assim,
o pluralismo de valores e de perspectivas diversas acerca da
vida boa, conduzido por interesses particulares, passionais e
afetivos, foi conduzido e restrito ao interesse particular,
afastando-o da esfera pública. Daí a proposta de adoção de
perspectivascomo a do “consenso sobreposto”,emRawls,e a
ideia de democracia procedimental, em Habermas
(15)
. Uma vez
realizada a divisão e a segmentação consensual e rígida, toma-
se como fundamentação de entendimento a perspectiva de que
as decisões no campo da esfera pública devem ser orientadas
por procedimentos imparciais e neutros, portanto racionais e
de
f
i
nitivos, de modo que con
f
l
itos não “maculem” o resultado
do decidido e dos acordos políticos adotados. Desse modo,
seria garantida a superioridade e a validade dos entendimentos
consensuados, pois não marcados pelo pluralismo de valores
e pelo contingente, e isso não prejudicaria a racionalidade e
universalidade dos procedimentos.
Os campos da teoria do direito e da teoria constitucional
igualmente foram marcados pela mesma perspectiva.
Tomando por base exemplificativa dois autores centrais
nestas teorias, Hans Kelsen e Ronald Dworkin, veri
f
i
ca-se que
perspectivas valorativas, políticas e mesmo o contingente não
(15) Breves considerações acerca destes autores foram realizadas na primeira parte deste escrito, retomando-os como perspectiva
exempli
f
i
cativa ao ora trabalhado neste tópico.
(16) Tais pressupostos são dados de antemão pelo pensador já nos prefácios à primeira e segunda edição, especialmente às páginas VII,
VIII e X. Tendo em vista a limitação do desenvolvimento da presente escrita, e para aprofundamento desta perspectiva, sugere-se veja
as páginas 387 a 397 do capítulo: a interpretação em Kelsen, H. (2000). Teoria pura do Direito. Martins Fontes.
(17) Para aprofundar a perspectiva interpretativa de Dworkin, sobretudo a partir do aspecto do direito como integridade, e da construção
da “resposta certa”, veja Dworkin, R. (1999). O Império do Direito. Martins Fontes.
Rudinei Jose Ortigara
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IUS ET VERITAS 63
interpretativa eleita representa uma possibilidade dentre
outras possíveis, já que as regras jurídicas são marcadas pela
característica da impessoalidade e generalidade e, portanto,
passível de compreensão de interpretação diversa. “Se as
decisões políticas não são neutras, no sentido de fazerem
opções entre valores antagônicos, o mesmo se pode dizer
das decisões jurídicas” (Kozicki, 2004, p. 147). Interpretações
signi
f
i
cativas sempre representam a eleição por um sentido, e
o fechamento para os demais, possíveis. Daí o aspecto
con
f
l
itivo e agonístico, e da necessidade de tal fechamento
ser parcial e provisório, e mesmo passível de questionamento
signi
f
i
cativo, e não totalizante ou de
f
i
nitivo, tendo em vista
que a opção por um sentido acaba por excluir os demais
possíveis e os indivíduos que os comungam; num contexto
plural e democrático, tal exclusão não deve ser de
f
i
nitiva. Daí
a importância de se reconhecer a possibilidade de pluralidade
de agentes interpretativos, notadamente no campo político, e
não somente o judiciário; se faz necessário o reconhecimento
de uma perspectiva e ação política signi
f
i
cativa e responsiva.
A constituição, sua jurisdição e seus modos de
interpretação não se encontram isolados da sociedade, e
não são necessariamente contrários à democracia. uma
relacionalidade e responsividade ao político. Em sentido
tensional o direito constitui um dos elementos de
f
i
nidores
da comunidade política, ao mesmo tempo em que é por ela
signi
f
i
cado (Kozicki, 2004). um sentido agonístico e tensional
entre constitucionalismo e democracia, entre direito e política,
que acaba por ser comum e contaminar ambos. Dele emerge a
impossibilidade de estabelecimento de consensos últimos ou de
fechamentos interpretativosde
f
i
nitivas.É neste sentido que
odesacordoeocon
f
l
itotambémotomadoscomocondições
fundamentais para o desenvolvimento do direito constitucional
e de sua legitimidade, na busca relacional do sentido da norma
com a vivência e a responsividade existencial e contingente
das demandas sociais e políticas. Esta, de certo modo, é a
perspectiva apresentadaporSiegel ePosta partirdaproposta
de modelo jurisprudencial chamado de constitucionalismo
democrático (Post & Siegel, 2013). Os con
f
l
itos a respeito
dos signi
f
i
cados da constituição a
f
i
rmam sua autoridade e
legitimidade ao invés de relativizá-la
(18)
; isso reaviva a questão
política e democrática, fazendo com que se busque mobilizar
argumentos signi
f
i
cativos e plurais a favor de lutas sociais
(Chueiri, 2018), que são diversas e pautadas no dissenso, e
sua representatividade política; um aspecto relacional e não
excludente entre articulações normativas e constitucionais,
suas interpretações e sua responsividade social.
O Constitucionalismo democrático,
apontando para o conflito como positivo
paraaa
f
i
rmaçãodaautoridadeconstitucional,
destaca inclusive a centralidade do
Backlash
(19)
, pois este expressa o desejo
de um povo livre de in
f
l
uenciar o conteúdo
da Constituição, e reações e conflitos
ao significado constitucional dado pode
contribuir para a coesão social (Post & Siegel,
2007). A interpretação das disposições gerais
e abstratas das regras constitucionais, e
a construção de respectivos signi
f
i
cados,
envolve a expressão de valores, de
f
i
nidores
e expressadores de um reino de signi
f
i
cados
identitários e plurais, denominado de nomos;
isso é claramente visível em debates sobre
ação a
f
i
rmativa, aborto e oração escolar,
e reflete perspectivas significativas e
interpretativas sobre valores como igualdade,
liberdade, dignidade, família ou fé, que
geram enormes de profundos dissensos, e
que possuem adesão tanto racional quanto
afetiva e passional.Daíquenão uma clara
separação entre julgamentos de matérias
concernentes à esfera pública e à esfera
privada; casos julgados a partir daquela
perspectiva podem gerar repercussões
públicas concernentes a valores tidos como
privados (Chueiri & Macedo, 2018).
Por isso que decisões judiciais sobre
tais questões provocam resistência popular
e dissensos, pois discordância profunda,
vigorosa e persistente, que para além de
razões normativas, argumentativas ou
construções racionais e procedimentos
neutros de justi
f
i
cação da decisão, implicam
em paixões e afetos que constroem visões
de mundo e perspectivas plurais, e suscitam
reações, por vezes violentas, e essas
lutas m como premissa a crença de
que a Constituição deve expressar um
nomos (Post & Siegel, 2007). D sua
relação com o avivamento da ação política.
Decisõescontroversasreavivamdivergências
e interpretações con
f
l
itivas; e são positivas,
pois tendem a aumentar a legitimidade da
(18) Um exemplo de abordagem que analisa o backlash como prejudicial é a de Cass Sustein, que a reação principalmente em termos
da ameaça que coloca em risco a autoridade judicial e a solidariedade social. Para esta análise veja Sunstein, C. (2007). If people
would be outraged by their rulling should judges care? The Social Science Research Network Eletronico Paper Collection. http://
ssrn.com/abstract _id=965581
(19) “O backlash é utilizado na esfera pública para designar a reação negativa e violenta a condutas, omissões ou decisões, sobretudo
de autoridades públicas, mas que pode ser aplicado a pessoas privadas também” (Chueiri & Macedo, 2018, p. 126).
Democracia, Constituição e Con
f
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ito: (Re)pensando articulações a partir do agonismo
Democracy, Constitution and Con
f
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ict: (Re)thinking articulations from the agonism
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IUS ET VERITAS 63
constituição a partir do momento em que grupos con
f
l
itantes
se reconhecem nela e reconhecem a legitimidade dela, bem
como lutam pela prevalência de determinados e possíveis
sentidos. Ao se debater politicamente sobre possíveis aspectos
e aberturas signi
f
i
cativas a constituição é reforçada, epossíveis
reações às signi
f
i
cações ao invés de relativizá-la buscam
manter sua capacidade de resposta democrática acerca de
aberturas interpretativas e signi
f
i
cativas. E “em tal relação,
os membros políticos (partidos políticos, movimentos sociais,
povo, instituições) se reconhecem mutuamente enquanto
adversários (e não inimigos), compartilhando uma mesma arena
política, que é regida por um sistema de regras e leis comuns
entre todos” (Fernandes & Dantas, 2019, p. 74).
O texto constitucional pode estar dado, mas esse fato não
é elemento que fecha possibilidades interpretativas acerca
de seus signi
f
i
cados, pois as normas constitucionais podem
circular por várias compreensões dentre atores sociais, como
o povo, o legislativo e o judiciário, de maneiras sutis, e nem
sempre conformes a interpretação constitucional o
f
i
cial dada
pelos tribunais. O que se questiona são os signi
f
i
cados, e não a
própria constituição que, pelo con
f
l
ito, possui sua legitimidade
a
f
i
rmada. Daí a importância de que as decisões alberguem
abertura para graus de responsividades políticas, por meio de
possibilidade de respostas contrárias e adesões vigorosas. É
neste sentido que o constitucionalismo democrático reconhece
o papel essencial do judiciário, mas não guarda em relação a
este um enfoque jurídico-centrado. Tribunais são importantes,
e fazem parte da estrutura institucional constitucionalmente
estabelecida, mas ao lado destes, e de suas decisões, a
valorização do engajamento público,de diversos atoressociais,
de valores e ideais populares, na orientação e legitimação das
instituições e práticas de revisão judicial, o que demonstra
engajamento político ativo (Post & Siegel, 2007).
A proposta do constitucionalismo democrático é um modelo
jurisprudencial, ao analisar a interdependência profunda e
inevitável entre direito e política (Post & Siegel, 2007), sem
descuidar da autoridade da constituição, e não é propriamente
um método de interpretação. Como tal, a aposta não está em
decisões orientadas, em última análise, por consensos últimos
e
f
i
nais. Se assim o fosse, o que ocorreria seria um ilhamento
das interpretações e decisões, tornando-as incomunicáveis e
não maculáveis pela política e pela “irracionalidade” pública,
dotando de propriedade superior as decisões dos Juízes como
melhores intérpretes e detentores da última palavra em direito
constitucional (Kozicki & Araújo, 2015, p. 116). Ao contrário
desta perspectiva, o constitucionalismo democrático pretende
compreender a dinâmica interrelação entre constitucionalismo e
política (Post& Siegel,2009),e as responsividades democráticas
acerca dos compromissos signi
f
i
cativos da constituição.
Controvérsias provocadas por decisões judiciais podem
trazer efeitos benéficos ao reavivarem engajamentos
políticos e a mobilização por compromissos signi
f
i
cativos
acerca da constituição. Como respostas
a estas, o campo político se movimenta
responsivamente, a favor ou contra decisões,
por caminhos de manifestação popular, via
instituições legislativas, ou mesmo judiciais.
Este movimento afirma pela necessidade
da participação do povo na construção
democrática e política dos sentidos
constitucionais, e no reconhecimento da
legitimidade da constituição como instrumento
vivo, que se relaciona com o contingente, e
que faz parte de perspectivas de vidas e de
anseios. Este movimento de construção da
legitimidade acaba por agregar legitimidade
democrática ao constitucionalismo, sendo
o conflito e o backlash instrumentos de
reafirmação e positivos neste processo
(Chueiri & Macedo, 2018).
A constituição, e a afirmação de sua
legitimidade, o está na afirmação
da separação, do isolamento entre
direito e política, ou da observância de
procedimentalismos para não contaminação
entre ambas. Num ambiente de pluralismo,
e de possibilidades de signi
f
i
cados amplos,
uma decisão, a exemplo da judicial, não
pode signi
f
i
car o fechamento interpretativo
permanente. A legitimidade é afirmada
a partir do momento em que os que não
tiveram sua perspectiva comtemplada pela
decisão possam crer na possibilidade de que
poderão lutar, mesmo que futuramente, pelo
advento e materialização de sua perspectiva,
pois esta permanece na arena política e não
é eliminada ou neutralizada. E isso pode
impulsionar e moldar, no campo político, a
luta apaixonada e o exercício de revisão do
entendimento judicial.
Paradoxalmente, a possibilidade de
desacordosobreosigni
f
i
cadodaConstituição
preserva a autoridade constitucional, porque
permite que pessoas de convicções muito
diferentes e divergentes a vejam como
expressão de seus compromissos mais
fundamentais (Post & Siegel, 2009). Mas mais
do que a possibilidade de que perspectivas
interpretativas feitas pelos tribunais acerca
do texto constitucional sejam marcadas
pelo dissenso e pelo conflito, e por sua
responsividade política, é necessário
reconhecer que a perspectiva do agonismo
pode ser explorada como fundamental à
Rudinei Jose Ortigara
Revista IUS ET VERITAS Nº 63, diciembre 2021 / ISSN 1995-2929 (impreso) / ISSN 2411-8834 (en línea)
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IUS ET VERITAS 63
própria constituição e de sua relação com a democracia, em
uma perspectiva tensional; o que será analisado na sequência.
e dissenso como fundamento para o
4. Constituição e agonismo: Con
f
lito
reconhecimento democrático plural
As duas perspectivas apresentadas nos tópicos anteriores,
embora de matrizes teóricas diferentes, nos permitem veri
f
i
car
aspectos de leitura e de (re)pensar a relacionalidade, articulações
e tensionalidade entre democracia, constitucionalismo e
responsividade política. Se, conforme a análise de Mouffe, o
fundamento das relações humanas e sociais é marcado
ontologicamente pelo antagonismo, condição concernente
ao político, inerradicável e inafastável devido a pluralidade
de valores que se desdobram no contingente, e ligados à
condição existencial dos indivíduos, e mesmo da construção
de identidades coletivas e plurais, promovendo uma abertura
de possibilidades in
f
i
nitas, se faz necessário pensar práticas
políticas e instituições que lidem com con
f
l
itos e dissensos
de tal modo a estabelecer certa organização, articulação e
fechamentos, criando unidades, embora parciais, em um
contexto con
f
l
itivo, diverso e contingente, para conter o
antagonismo e transformá-lo em agonismo, devendo-se
re
f
l
etir em práticas não excludentes mas convergentes e de
reconhecimento da pluralidade.
Assim, o campo da ação política, bem como a comunidade
política democrática, deve ser marcado e estruturado pela
presença de adversários, que se reconheçam como legítimos,
embora discordem profundamente em suas perspectivas
existenciais e ético-políticas plurais, con
f
l
itivas e dissensuais,
e não como inimigos. está propriamente a condição de
existência mesma da democracia, a discordância profunda,
mas com convincia potica, que embora dissensual
e conflitiva não implica a eliminação do outro, e, nesta
condição, da possibilidade do estabelecimento de uma
comunidade política. Mas para isso a ação política deve
ter certa mediação, pois se “não mediada é quase que
imediatamente tomada como violência, excesso, abuso”
(Chueiri, 2013, p. 26). Conforme mencionado anteriormente
essa mediação pode ser dada pelo constitucionalismo, numa
articulação necessária entre o direito e o político, entre o
constitucionalismo e a democracia (Kozicki, 2000). Neste
caso, como articulação necessária entre poder originário e
poder derivado, constituinte e constituído.
Mas esta mediação e articulação não se sem uma
tensão fundamental entre democracia e constituição, vez que
a democracia se caracteriza pela teoria do
poder absoluto e da expansão do poder, ou
seja, que não busca e que não reconhece em
sua natureza a limitação, e que, ao mesmo
tempo, é base e fonte do constituinte, o poder
soberano do povo. o constitucionalismo,
o constituído, se trata da teoria do governo
limitado, da democracia limitada, da limitação
do poder soberano. Como limitar o que
por natureza não busca ser limitável? E
como proceder com tal articulação? Não
sem tensão. Esta lógica tensional, entre
constitucionalismo e democracia, não é
articulação facilmente apaziguável. Não
como prevalecer a ideia de que uma vez
estabelecida a constituição, pela garantia
normativa de direitos e estabelecimento de
organização de poderes, tal normatividade
daria conta de neutralizar tensões no campo
da política, que são por natureza con
f
l
itivas, e
“de que basta constitucionalizar as diversas
relações que se estabelecem na sociedade
(políticas, econômicas, ambientais, laborais,
familiares, etc.) e elas se realizarão da
maneira prescrita pela norma constitucional,
de forma que a promessa se cumpriu e, assim,
viveremos uma realidade livre das tensões,
como se fosse o paraíso” (Chueiri, 2013, p. 27).
A constituição como mediação para a
ação política é este campo que pretende ser
a limitação, mas ao mesmo tempo a condição
de existência do con
f
l
ito, ou seja, determinar
certos limites, mas não tolher a condição de
existência do político, do agonismo. Nesse
sentido, o se deve pensar apenas a
interpretação da constituição como possível
fomentadora da ação política, conforme
propõe o constitucionalismo democrático,
mas pensar a constituição mesma marcada
e como agonística, como mediadora da
ação política, não como fechamento, como
apagamento ou afastamento do dissenso
da esfera pública, mas como condão
própria da existência con
f
l
itiva e dissensual,
e, portanto, como condição própria da
existência da democracia
(20)
. Assim, “há um
sentido agônico e agonista que é preciso ser
exploradonaconstituição(...).Precisamosde
(20) Neste sentido é que “a Constituição pode ser compreendida como um dos limites que faz a distinção entre o agonismo e o antagonismo,
entre o con
f
l
ito que favorece a dinâmica democrática e aquele que a rejeita” (Almeida, 2014, p. 183).
Democracia, Constituição e Con
f
l
ito: (Re)pensando articulações a partir do agonismo
Democracy, Constitution and Con
f
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ict: (Re)thinking articulations from the agonism
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IUS ET VERITAS 63
Isso porque pela criação de consensos e
procedimentos racionais e universais acabam
por excluir o agonismo do contingente e de não
reconhecer a tensionalidade, a multiplicidade
de demandas democráticas presentes na
sociedade
(23)
, essenciais para a constituição
de identidades políticas democráticas e
plurais. Longe da pretensão de abafar o
con
f
l
ito, pela ausência de reconhecimento
do agonismo, tal perspectiva produz uma
de
f
i
ciência democrática de participação nas
instituições e nas ações políticas, pois “a
dimensão coletiva não poderia ser eliminada
dapolítica(Mouffe,2005, p.70). Mais doque
a pretendida segurança e estabilidade, esta
perspectiva promove a manutenção do status
quo e de determinadas hierarquizações.
Neste processo, tanto a democracia
quanto o constitucionalismo acabam por ser
esvaziadosdeseussigni
f
i
cadoseisoladosda
participação do povo, e são dominados por
mecanismos tecnocratas. A democracia sofre
de um processo de desdemocratização, sendo
cada vez menos os lugares onde a cidadania
pode se expressar de forma viva e vibrantes
e de tomar decisões de maneira participativa
e efetiva. A constituição igualmente passa
por um processo de descaracterização, e
mesmo de desquali
f
i
cação da participação
interpretativa e significativa de diversos
agentes, em nome de uma racionalidade
instrumental, procedimentos exclusivos,
e da operacionalidade técnica; isso é
acompanhado pelo medo do povo e de
tudo aquilo que isso representa e do que
dele procede
(24)
. Sob esta perspectiva é
falso afirmar que, num plano potico e
constitucional, a democracia seja o poder do
uma constituição capaz de capturar a natureza (agonista) do
político” (Chueiri, 2013, p. 27).
Conforme aponta Mouffe, no campo da teoria política, a
tensão não pode ser articulada por meio de uma negociação
consensual de caráter racionalista e permanente, procedimental
e tecnicista, como pretende a teoria dominante de cunho liberal,
pois acaba por afastar as condições próprias de realização
da política, ou seja, o agonismo, e a supressão de uma esfera
pública política democrática, viva e vibrante (Mouffe, 2003). Da
mesma forma a constituição não pode estar conformada por
mecanismos liberais de mútua negociação entre os poderes
constituídos, mas deve ela mesma ser objeto e sujeito da
política democrática, e interrelação e afetação mútua, de
reconhecimento do plural, da abertura e do fechamento. “Os
direitos estão na Constituição, na medida em que ela permite a
sua constante reinvenção e demanda (dos direitos)” (Chueiri,
2013, p. 29). E isso não ocorre sem uma perspectiva agonista,
mas por sua a
f
i
rmação.
Algumasteoriaspolíticaseconstitucionaiscontemporâneas
tem perspectivas que suprimem o aspecto do con
f
l
ito e do
dissenso da construção de práticas políticas democráticas
(21)
,
bem como afastam os próprios indivíduos e coletivos da
participação política, compreendendo-os enquanto elementos
que ameaçam o constitucionalismo e a democracia (Faller,
2020). A atualidade, e as práticas teóricas que fundamentam
tanto a democracia, a política, quanto o constitucionalismo, e
suas articulações, vêm sendo marcadas especialmente por um
imagináriohegemônicodefundamentoeconômicoeneoliberal,
que acaba por apostar em procedimentos racionais e universais,
e tecnocráticos, excluindo o contingente, limitando, reduzindo
e esvaziando conteúdos signi
f
i
cativos tanto da democracia
quantodoconstitucionalismo.Seconstituemenquantopráticas
com poder de nominar e dominar perspectivas signi
f
i
cativas
acerca da liberdade e da igualdade, bem como de fundamentar
perspectivas individualistas e respectivas práticas políticas,
constitucionais e institucionais sob esta ótica
(22)
.Taisprocessos
debilitam a constituição, e a garantia de direitos, e a democracia,
entendidos como poder do povo e para o povo (Rubio, 2018).
(21) A exemplo das nominadas no tópico anterior.
(22) Segundo Laval e Dardot, a predominância do neoliberalismo como hegemônico afeta a própria subjetivação dos indivíduos, que,
pautada pela lógica empresarial como modelo de subjetivação, passam a adotar a competição entre indivíduos como norma de
conduta. Isso di
f
i
culta ou elimina qualquer perspectiva de ação conjunta ou construção de identidades coletivas. Para aprofundamento
desta veja o capítulo 9 (a fábrica do sujeito neoliberal) da seguinte obra: Laval, C. & Dardot, P. (2016). A nova razão do mundo:
ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.
(23) Mouffe identi
f
i
ca o neoliberalismo como hegemonia dominante.Para ela o neoliberalismo impede a prática de uma democracia radical,
pois esta hegemonia “toma como certo o terreno ideológico que foi estabelecido como resultado de anos de hegemonia neoliberal
e transforma o que é um estado conjuntural de acontecimentos numa necessidade histórica. Aqui, como em muitos outros casos,
o mantra da globalização é invocado para justi
f
i
car o status quo e para reforçar o poder das grandes corporações transnacionais”
(Mouffe, 2003, p. 21).
(24) Rubio a
f
i
rma que tudo o que procede do popular é fonte de receio, de prejuízo, ódio e temor. As classes populares são desquali
f
i
cadas e
associadas ao caótico, ao perigoso, ao primitivo, imaturo, inculto e desordenado, e são sinônimos de insegurança, descon
f
i
ança e
ameaça ao estabelecido. E devido a tal perigo deve a participação ser contida, limitada, manipulada, reduzida e esvaziada através de
diversas políticas de dominação, inclusive consideradas democráticas (Rubio, 2018, pp. 108-109).
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IUS ET VERITAS 63
povo e para o povo (Rubio, 2018), mas, sobre as condições
caracterizadas acima, este acaba sendo excluído da esfera
pública, e acaba sendo tomado como inimigo e não como
adversário, o que lhe tolhe a condição própria da política,
conforme alerta Mouffe.
É preciso sair deste imaginário desempoderador e
excludente e resgatar a dimensão do agonismo inerente à
comunidade e à ação política e ao reconhecimento do diverso, e
construir uma esfera pública viva, vibrante, participativa e
plural. E num aspecto de pluralidade democrática necessário
se faz (re)pensar práticas não excludentes, mas a abertura para
o reconhecimento do outro, da pluralidade de perspectivas,
mesmo que dissensuais, como condição própria de existência
da democracia e da ação política. Para tal, é preciso repensar a
articulação tensional entre democracia e constituição, que leve
em consideração o contingente e práticas reais. Em relação à
democracia, esta deve ser vivenciada a partir do contingente,
de perspectivas de vida concretas, de um conjunto de ações,
mediações e articulações que tem como objetivo possibilitar o
poder do povo e para o povo, e da luta e reivindicações de
membros concretos de uma comunidade política e plural.
Mesmo “o povo” não deve ser compreendido a partir de um
essencialismo, mas de sujeitos concretos e contingentes em
articulações vivas e precárias (Chueiri, Fonseca & Hoshino,
2020). Em relação à constituição, é preciso superar a visão
desta como poder constituído, a qual esvazia o poder do
povo, e a perspectiva política e democrática, na produção
de signi
f
i
cados, e reavivar o poder constituinte (Rubio, 2018).
A participação efetiva passa pelo reconhecimento de que o
político é ontológico e constituinte da realidade social, e da
possibilidade contingente de se estabelecer certa unidade em
um contexto con
f
l
itivo, para conter o antagonismoetransformá-
lo em agonismo.
É preciso pensar a constituição para além das amarras do
tecnicismo, ou para além das “amarras rígidas do direito (ou
do constitucionalismo) como fonte de produção das normas
constitucionais”, e nelas não se esgotar (Chueiri, 2013, p.
28). Ainda que o constitucionalismo seja um fechamento
e uma limitação ao poder constituinte e da democracia,
deve-se reconhecer este como provisório, tenso e marcado
pelo agonismo, ou seja, os direitos nele constantes são
sempre abertos e passíveis de reinvenção. Isso implica
também em não aquiescer com decisões
institucionais descompromissadas com o
social. “A linguagem do constitucionalismo
assim como a linguagem da democracia
é, em si mesma, promessa e agonistas”
(Chueiri, 2013, p. 28). Agonista ante a
pluralidade e a ausência de possibilidade de
fechamentos permanentes ou do afastamento
do con
f
l
ito; Promessa enquanto condição de
possibilidade, que deve permanecer aberta
diante da imprevisibilidade e da contingência
social, e da realização futura de possibilidades
plurais de signi
f
i
cação e realização.
É neste sentido que a constituição não
se reduz ao constituído, mas nela está
presente e retém o constituinte
(25)
, como
promessa, como abertura, que constitui uma
comunidade política como forma de vida,
como contingente, como não fixo, como
perspectiva não fundacionista (Chueiri,
Fonseca & Hoshino, 2020). É assim que
o caráter normativo possui repercussões
no ontológico, no social, na constituição
contingente dos sujeitos políticos, ao mesmo
tempo que é por estes significada, num
processo de mútua implicação.
Assim, da mesma forma com que a
política deve ter por fundamento o agonismo,
ou seja, o reconhecimento da pluralidade, e a
perspectiva aberta a realizações diversas e
plurais, o constitucionalismo e a constituição,
na qual retém o constituinte, não pode ser um
fechamento normativo e acabado, pois seria
autoritário, conforme exposto anteriormente.
Mas a abertura como promessa, preocupa-
se com o vir-a-ser, numa sociedade plural,
com a constituição de cidadãos e expressões
plurais, cujos contornos existenciais, embora
contingentes, não se prendem à literalidade
normativa do constituído, ou de se fechar
o futuro por compromissos firmados no
passado (Almeida, 2014). É neste sentido que
(25) “Para a ciência do direito, o poder constituinte é tradicionalmente a fonte da qual a nova ordem constitucional emana. É o poder de
fazer a nova Constituição, da qual os poderes constituídos adquirem a sua estrutura. Desta perspectiva o poder constituinte instala
uma ordem jurídico-constitucional totalmente nova”. Mas o poder constituinte não se esgota no constituído. “É preciso recuperar esta
ideia e esta práxis de que o povo, soberano, ao se autolegislar, cria e funda a Constituição, através de toda radicalidade que está
em tal ato fundante, impondo a si mesmo as regras e limites que vão regular os seus poderes constituídos. Ainda, a ideia de que
o ato fundante e constituinte não se dissolve depois que a Constituição está feita, mas nela permanece como o seu traço político
próprio, aquilo que não alivia a sua (da Constituição) responsabilidade em relação à democracia e aos direitos fundamentais: seja
no momento da sua aplicação, seja no momento da sua própria revisão” (Chueiri, 2013, pp. 30-31).
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constituição e democracia, e sua interrelação
viva e dinâmica com o contingente. O con
f
l
ito,
e sua expressão no agonismo, inerente a
este processo, ao contingente, ao tecimento
signi
f
i
cativo, à tensão entre política e direito,
democracia e constitucionalismo, indica
a ausência de fechamentos últimos, e a
potencial modi
f
i
cação como possibilidade
de inclusão de demandas plurais, imanente
a processos democráticos de disputas
significativas e de participação, e que
afetam e implicam tanto a política quanto o
constitucionalismo.
5. Considerações
f
inais
Tendo a consciência de não esgotamento da
temática trabalhada, bem como dos riscos
envolvidos em comprometer teorias de
matrizes teóricas diferentes, uma no campo da
teoria política, e outra no constitucionalismo;
mas um aspecto importante analisado
por Mouffe que pode ser interessante tanto
para a democracia (política) quanto para o
constitucionalismo, e na articulação entre
ambas. Trata-se do agonismo, da a
f
i
rmação
de con
f
l
itos e da construção de signi
f
i
cados
e da abertura ao reconhecimento do plural,
contribuindo para a construção de sociedades
faticamente plurais e democráticas, bem
comodacompreensãodoconstitucionalismo
neste processo.
Mas para isso o conflito deve ser
administradopoliticamente,naesferadaação
política, ou seja, deve-se reconhecer que não
hácomoapagá-loounuli
f
i
cá-locomocondição
tanto do político, quanto das instituições
sociais. uma certa indeterminação de
sentidos, por vezes radicalmente dissensuais,
que não se vergam a práticas consensuais
de cunho universalizante e totalizante,
ou da proposta de algum bem comum
substantivo, sem causar prejuízos ao político
e a democracia que se quer plural. Os próprios
signi
f
i
cados são politicamente construídos e
em relacionalidade com práticas sociais,
marcados por relações de poder.
a constituição, marcada pelo agonismo e pela promessa, não
deve pretender resolver os con
f
l
itos políticos, mas mediá-los,
tornando-os produtivos num processo de vir-a-ser, de abertura
a múltiplas possibilidades signi
f
i
cativas, e marcadas pelo
agonismo. Pretender resolver con
f
l
itos fecha a possibilidade
con
f
l
itiva, e encerra a expressão do próprio político. Embates,
tensionalidades, conflitos e dissensos são importantes
na medida em que transformam o conteúdo normativo da
constituição a partir da articulação com perspectivas plurais e
da possibilidade de seu acolhimento e signi
f
i
cação.
Pensar a constituição como abertura, como promessa,
como realização futura, como ausência de fechamento
f
i
xo
para determinados signi
f
i
cados ou conteúdos normativos,
e como marcada pelo agonismo, é importante para uma
sociedade pluralista, pois garante que o texto normativo
se abra potencialmente para acolher o diverso, e não se
feche em perspectivas signi
f
i
cativas
f
i
xas e consensuais,
numa textualidade normativa dada e datada, mas numa
dinâmica relacional e numa abertura que embora albergue
determinados fechamentos não os torna
f
i
xos, mas abertos a
contornos políticos. Ademais, esta perspectiva deve estar
acompanhada pelo reconhecimento do outro, enquanto
contingente e a
f
i
rmador de práticas sociais, como adversário,
jamais como inimigo, e que as demandas e as lutas por direitos,
possuem articulações entre indivíduos e equivalências a serem
consideradas entre as diversas lutas sociais e democráticas
(Kozicki, 2000). Significados e conteúdos interpretativos
são construídos pela interação contingente e normativa, e
agonística. Daí a importância de a constituição reter o
constituinte, a promessa, e de mediar a ação política e não
ser seu fechamento, numa tensão constante e contínua entre
constitucionalismo e democracia e sua articulação produtiva.
A constituição como mediação para a ação política é
a constituição que permite o conflito e o dissenso como
fundamental para o reconhecimento de práticas plurais e
diversas, portanto democráticas. É a abertura, enquanto
promessa, não só no presente, mas também no momento em
que é demandada
(26)
(no futuro), para ações que incorporam a
constituição numa articulação política, e a partir do contingente,
de determinados sujeitos políticos, na construção de conteúdos
significativos (Chueiri, Fonseca & Hoshino, 2020, p. 86).
Neste sentido, não como se reduzir múltiplas demandas,
e perspectivas plurais, que sejam aglutinadas ou reduzidas
a interesses gerais e únicos, ou à eleição interpretativa
produzida e emanada apenas por uma perspectiva, a judiciária
ou estatal. Isso promove abertura para demandas plurais e,
potencialmente, para seu reconhecimento, a partir da tensão
articulatória entre constituído e constituinte (promessa), entre
(26) “A colocação de uma promessa não encontra na anterioridade de seu fazer suas condições, mas é no exato ato de seu anúncio
que ela implica um conteúdo, encarnado na sua ação” (Chueiri, Fonseca & Hoshino, 2020, p. 86).
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IUS ET VERITAS 63
Embora dissensual, o agonismo é essencial como prática
político-democrática, pois ao mesmo tempo que reconhece a
pluralidade de perspectivas, e em mesmo sendo uma delas
hegemônica,assinalaqueoháapossibilidadedefechamento
permanente, nem mesmo que comunga de ideias divergentes
das hegemônicas é tomado por inimigo, a ser eliminado, mas
como adversário, em tensão constante no campo político, mas
legítimo. Essa perspectiva e abertura e indeterminação não
permite que sejam estabelecidos consensos permanentes, e
nem mesmo instituições que se considerem como “guardiãs da
verdade”. Isso signi
f
i
ca que as relações sociais sempre estão e
estarãoenvolvidas em jogos depoderes, em tensãoecon
f
l
ito, e
éjustamente estaarticulaçãoecontinuidadecon
f
l
itivaquetorna
e se torna possibilidade de abertura para o reconhecimento e
expressão de práticas plurais, condição que a
f
i
rma a própria
democracia, e esta sempre está aberta à sua própria realização,
projetando-se para o futuro, para a abertura do diverso e do
plural, de práticas plurais.
Por certo que num campo plural e de perspectivas
dissonantes e divergentes, por vezes radicalmente contrárias,
nem todas as práticas serão reconhecidas. Deve existir
determinados fechamentos, determinados impedimentos à
possibilidade do caos e da violência. Conforme a perspectiva
trabalhada, constatou-se que o direito, sobretudo a constituição,
pode se constituir enquanto instrumento de fechamento de
significados, mas este o deve ser enquanto mediador da
ação política. Esta perspectiva foi trabalhada a partir do
constitucionalismo e de sua possibilidade de concretização
da democracia e da expressão do pluralismo que lhe é
concernente.
Numa primeira perspectiva, a do constitucionalismo
democrático, veri
f
i
cou-se o reconhecimento do con
f
l
ito como
prática responsiva democrática e política ao fechamento
signi
f
i
cativo e interpretativo dado por decisões nas cortes. O
con
f
l
ito garante e a
f
i
rma a legitimidade da constituição
numa sociedade marcada pelo pluralismo de valores. Assim, e
embora constituam fechamentos, decisões das cortes não
devem ser tomadas como supremas ou última palavra, como
manifestação de uma razão superior, mas como aberturas,
como possibilidades de reavivamento da ação política e da
responsividade pela a
f
i
rmação de perspectivas signi
f
i
cativas
plurais.
Há, neste sentido, uma tensão agônica entre direito e política,
entre democracia e constitucionalismo, e entre decisões e as
práticas reais, e que é interessante na construção de um projeto
político de sociedade, este tido como inacabado e em abertura
para a constante transformação. Neste sentido, a jurisdição
constitucional não encerra possibilidades interpretativas, que
podem ser extraídas tanto do povo como de outras instituições
sociais. Ela não encerra o processo político, mas o fomenta
como prática democrática e plural.
Ao término da pesquisa, a hipótese
de que a condição con
f
l
itiva pode e deve
ser compreendida como produtiva para
o reconhecimento de expressões plurais
tanto na política quanto no direito, tanto na
democracia quanto no constitucionalismo, e
que delas não ser extirpada, mas transformada
em agonismo, em acolhimento e expressão
do plural pôde ser con
f
i
rmada. Conforme
a perspectiva e fundamento apresentados,
a afirmação é de que a perspectiva do
agonismo apresenta um interessante aspecto
ao constitucionalismo. Não basta que a
interpretação constitucional seja responsiva, é
preciso que a própria constituição seja aberta
ao agonismo e mediadora da ação política.
A proposta do modelo adversarial, delineada
nas obras de Mouffe, compreende con
f
l
itos
como confrontos reais, e políticos, que lutam
por signi
f
i
cados a partir de um conjunto de
regras compartilhadas. Veri
f
i
cou-se que a
Constituição como mediação à ação política
podeseresseconjunto.Sobestaperspectiva,
entende-se que a Constituição não se fecha
ao constituído, ao passado, como conjunto
textualdepositáriodedeterminadasverdades,
determinados consensos inquestionáveis,
mas de que se abre, como promessa,
como garantia de determinados direitos
(fundamentais), que, embora abstrata e
geral, por seu caráter de normatividade,
não se fecha em sua literalidade, mas como
mediação, na qual os próprios signi
f
i
cados
normativos não são dados, mas construídos
a partir de lutas (poticas) concretas e
contingentes, numa imbricação agonística
entre a normatividade e a realidade plural da
democracia, rea
f
i
rmando-a.
Essa perspectiva de mediação da ação
política, e de projetar aberturas enquanto
promessa, apresenta interessante articulação
entredireitoepolítica,entreconstitucionalismo
e democracia, na qual se compromete a
própria constituição como mediação da ação
política, e concretização da democracia, mas
não se reduz a esta, e vice-versa. Sob esta
perspectiva, uma interessante articulação
entre constitucionalismo e democracia, que
pode ser dada pelo agonismo, pois permite
o con
f
l
ito e o dissenso como fundamentais
para o reconhecimento de práticas plurais
diversas, e abertas para perspectivas
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IUS ET VERITAS 63
do porvir, portanto, comprometidas com
realizações democráticas, cujos sujeitos que
as compartilham, mesmo que não acolhidas
de imediato, são tidos como legítimos e como
membros da comunidade. E esta perspectiva
é indispensável para a concretização da
democracia em sociedades plurais.
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