O regime jurídico aplicável ao ato ilícito lucrativo: entre Responsabilidade Civil e enriquecimento sem causa(*)
The legal regime applicable to illicit profitable acts: between Tort Law and Unjust Enrichment
Thalles Ricardo Alciati Valim(**)
Universidade do Estado de Minas Gerais (Belo Horizonte, Brasil)
Gabriel Ribeiro dos Santos(***)
Universidade do Estado de Minas Gerais (Belo Horizonte, Brasil)
Resumo: Busca-se identificar o enquadramento conceitual adequado para o ato ilícito lucrativo, entendido como aquele do qual o ofensor extrai vantagens que superam a própria dimensão da obrigação de indenizar. Para isso, estudam-se os campos da Responsabilidade Civil e do enriquecimento sem causa, antevistos como candidatos para a incidência jurídica sobre o fenômeno. Percebe-se que a estrutura do regime da Responsabilidade Civil é inapta para a tarefa perseguida, pois a obrigação de indenizar tem outra finalidade: a de reparação de danos. Por outro lado, o reconhecimento de figuras parcelares de enriquecimento sem causa (em especial, o enriquecimento por intervenção) podem vir a servir para que, mediante obrigação de restituir, retirem-se as vantagens econômicas auferidas pelo ofensor em virtude da conduta reprovável.
Palavras-chave: Função punitiva da Responsabilidade Civil - Danos extrapatrimoniais - Ato ilícito lucrativo - Enriquecimento por intervenção - Enriquecimento sem causa - Figuras parcelares do enriquecimento sem causa
Abstract: This paper aims to identify the appropriate conceptual framework for illicit profitable acts, understood as those from which the wrongdoer derives advantages that exceed the mere dimension of the obligation to compensate. To do so, the fields of Tort Law and Unjust Enrichment are studied, both of which are considered candidates for legal application. It becomes evident that Tort Law’s structure is inadequate for the pursued task, as the purpose of compensation is different: it serves to repair damage. On the other hand, recognizing partial forms of unjust enrichment (especially enrichment through intervention) may serve to require the wrongdoer to restitute the economic benefits obtained due to reprehensible conduct.
Keywords: Tort Law’s punitive function - Non-pecuniary damages - Illicit profitable acts - Unjust enrichment through intervention - Unjust enrichment - Types of unjust enrichment
1. Introdução
O ato ilícito lucrativo é figura que vem recebendo recentemente a atenção dos juristas brasileiros, supostamente devido ao fato de não haver mecanismos eficientes, até o momento, para o seu combate; pelo menos, não no campo jurídico.
Conceitua-se o ato ilícito lucrativo como sendo aquele cujo agente pratica movido pela análise utilitarista de que os custos envolvidos com a consumação do ato – e, particularmente, a indenização – não ultrapassam os benefícios obtidos. Há, portanto, antes da prática do ilícito lucrativo, uma ponderação das consequências, prejudiciais e benéficas ao agente, e que apontam para um saldo positivo.
Esse saldo positivo estimularia a prática de atos a priori indesejáveis pela sociedade e, em particular, pelo ordenamento jurídico, vez que os instrumentos jurídicos tradicionais de combate ao ato ilícito não seriam eficazes para coibi-lo. Numa análise de custos e benefícios, as vantagens advindas de um ato ilícito poderiam estimular a sua prática. Pense-se na hipótese em que a indenização, restrita à extensão dos danos efetivamente suportados pela vítima (Código Civil, art. 944, caput) corresponda a quantia inferior à totalidade das vantagens extraídas pelo agente responsável.
Assim, argumenta-se, de um lado, que a Responsabilidade Civil, em sua clássica função compensatória, ao se pautar pela extensão do dano, estabelecida no artigo 944 do Código Civil, não permitiria que a obrigação de indenizar ultrapassasse o limite legal. Em outras palavras, restringindo-se a indenização aos danos suportados pela vítima, o agente teria para si as vantagens advindas da conduta ilícita, com a consequente mensagem de que o “ato ilícito compensa”.
Diante desse impasse, algumas vozes se erguem em favor de uma redefinição das funções desempenhadas pela Responsabilidade Civil, propugnando o reconhecimento de funções punitivo-preventiva no sub-ramo em questão. Essa redefinição importaria, ainda, em um redesenho da própria estrutura da Responsabilidade Civil, de sorte a abrigar em seu bojo não apenas o dano, em sua definição clássica, entendido como lesão a um direito subjetivo, mas, ainda, hipóteses de sanções punitivas, inspiradas em experiências havidas em outros países, notadamente aqueles pertencentes aos países de matriz Common Law. Está-se a falar, precisamente, das figuras dos exemplary and punitive damages, importadas para o cenário brasileiro sob a alcunha de “danos punitivos” ou “indenização punitiva”.
A admissão do “dano punitivo”, no sistema brasileiro de Responsabilidade Civil, serviria, para essas mesmas vozes, como remédio contra o ilícito lucrativo, uma vez que permitiria retirar as vantagens obtidas pelo agente com a prática do ato danoso(1).
É de se registrar, contudo, que o reconhecimento de funções punitiva e preventiva (deterrence) na Responsabilidade Civil, com vistas a resolver um problema particular, pode levar a consequências para além do âmbito esperado. A uma, pelo fato de a importação de elementos punitivos não vir acompanhada das garantias fundamentais previstas contra o poder punitivo (ius puniendi) e aplicadas no domínio do Direito Penal, sobretudo o princípio da legalidade estrita (nullum crimen nulla poena sine lege), da proporcionalidade das penas e da proibição de responsabilidade penal objetiva. A duas, em virtude de a função punitiva ter potencial de contaminar hipóteses tradicionais de danos, inserindo em seu âmago um elemento estranho, capaz de conceder, ao juiz ou a outra qualquer autoridade adjudicante, o poder de elevar o quantum indenizatório, sem se limitar à extensão efetiva do dano, em afronta ao princípio da reparação integral (tout le dommage, rien que le dommage; em português, “todo o dano, mas nada além do dano”).
Essa contaminação já se faz presente na jurisprudência brasileira, particularmente no âmbito dos danos extrapatrimoniais e coletivos(2). Com efeito, pululam decisões judiciais que reconhecem, como uma das funções da indenização atribuída a título de danos morais, um caráter punitivo-dissuasório, apto a justificar a utilização de certos critérios para a apuração do montante da indenização e que dizem respeito mais à conduta do agente do que à extensão das consequências prejudiciais suportadas pela vítima; a título de exemplo: (i) o grau de culpa do agente; (ii) a situação patrimonial do agente; e (iii) a gravidade da conduta. No Recurso Especial 880.349, o Superior Tribunal de Justiça considerou ser possível a majoração de indenização com a dupla finalidade de “punir adequadamente o autor do ato ilícito e de indenizar satisfatoriamente os prejuízos extrapatrimoniais sofridos” (Superior Tribunal de Justiça, 2007).
Do mesmo modo, o reconhecimento da existência de danos dispersos e difusos, atingindo um sem-número de indivíduos e espraiando-se por gerações futuras importou no reconhecimento das categorias dos danos individuais homogêneos, difusos e coletivos. A censurabilidade das condutas causadoras de ditos danos, especialmente por afetarem bens de notável interesse coletivo, como meio ambiente e saúde, conduziu o Superior Tribunal de Justiça a afirmar, certa feita, que os danos coletivos teriam caráter eminentemente punitivo. A esse respeito, conforme se infere do entendimento emitido pelo Recurso Especial 1.303.014/RS, vale a pena a transcrição de parte do voto do ministro relator Luis Felipe Salomão: “condenação por dano moral coletivo difere do dano moral a título individual, configurando sanção pecuniária, de caráter eminentemente punitivo, em face de infração a direitos coletivos ou difusos” (Superior Tribunal de Justiça, 2013).
Indaga-se, entretanto, se seria preciso chegar ao extremo de romper com as bases que alicerçam a Responsabilidade Civil para a resolução do problema do ilícito lucrativo. Isso porque, sem dúvida, os efeitos indesejáveis apontados acima poderiam levar a uma ruptura do sistema que não serviria mais, sequer, para a reparação do dano de fato existente. E isso não é pouca coisa. Reconhecer os limites da Responsabilidade Civil e as suas potencialidades é, também, admissão da falibilidade humana, que não consegue tudo prevenir. Em última medida, há danos que são inevitáveis e que devem ser reparados ou compensados. Para tanto, a Responsabilidade Civil deve manter-se em bases dogmáticas firmes.
Com essa constatação em mente, o presente artigo pretende dedicar-se ao fenômeno do ato ilícito lucrativo, buscando enquadrá-lo conceitualmente dentro do Direito Privado, sem partir, necessariamente, da premissa –muitas vezes aceita– de que a Responsabilidade Civil seria o campo adequado para o seu tratamento.
Em uma análise preliminar, é possível pelo menos cogitar que o instituto do enriquecimento sem causa possa ser ferramenta tão eficiente quanto a Responsabilidade Civil, senão melhor, para a neutralização das consequências benéficas extraídas do ato ilícito praticado pelo agente. De fato, um dos subtipos de enriquecimento sem causa, a saber, o do “enriquecimento por intervenção” parece apto a incidir sobre a hipótese de ilícito lucrativo.
Diante dessas premissas, a análise pretendida desdobra-se em três partes. Em um primeiro momento, busca-se verificar se a função punitiva é possível de ser incorporada à Responsabilidade Civil e se a Análise Econômica do Direito (Law and Economics) é compatível com os fundamentos desse sub-ramo jurídico. Em etapa posterior, investigam-se as potencialidades do enriquecimento sem causa para o tratamento jurídico do ilícito lucrativo. Por fim, diante da perspectiva de uma possível reforma do Código Civil brasileiro, são estudadas as propostas que podem repercutir no tema objeto do presente artigo.
2. Vigiar e punir na Responsabilidade Civil
2.1. A incorporação da função punitivo-preventiva à Responsabilidade Civil
De maneira tradicional, entende-se que o papel da responsabilidade civil é o de conceder indenização (desfazer o dano), com o objetivo de posicionar a vítima em situação que estaria atualmente se não tivesse experimentado qualquer dano. Em seu conceito, está implícita a obrigação de reparar as esferas patrimonial e extrapatrimonial da pessoa que foi prejudicada.
Etimologicamente, o termo “responsabilidade” liga-se, inevitavelmente, à obrigação de indenizar, visto que remete ao conceito de devedor, pois se desenvolveu a partir do vocábulo latino spondere, que significava “prometer”(3).
No contexto do Direito brasileiro, a noção de ato ilícito é explicitamente delineada pela Responsabilidade Civil, conforme os artigos 186 e 927, ambos do Código Civil de 2002. Na definição do art. 186, especificamente, percebe-se que a violação de um direito, por dolo ou culpa, com o consequente surgimento de um prejuízo, caracteriza-se como ato ilícito. Contudo, é importante destacar que não basta meramente a transgressão de normas jurídicas para imputar responsabilidade civil ao infrator. São premissas diversas das conhecidas por outras áreas do Direito, como as do Penal e Administrativo. Assim, no âmbito civil, o ato ilícito não é equivalente a qualquer comportamento contrário à lei em geral. O prejuízo é o componente central da definição de ato ilícito, sendo que, na sua ausência, não se estabelece a necessidade de indenização. O artigo 927, do Código Civil, define o ato ilícito como condição essencial para a existência da obrigação de indenizar. Em outras palavras, sem ato ilícito não há dever de indenizar, assim como não existe ato ilícito sem a ocorrência de prejuízo.
Verdade é que nem sempre esses foram os fundamentos da Responsabilidade Civil. Nas sociedades da Antiguidade, a vingança era o aspecto preponderante. As respostas jurídicas aos atos ilícitos eram marcadas por retaliações severas e atitudes vingativas. A pessoa responsável por causar um dano estava sujeita a enfrentar represálias equivalentes à gravidade de sua ação, manifestadas por meio de atos violentos e perseguição (Martins-Costa & Pargendler, 2005, p. 17). Mas a função reparatória já vinha surgindo em determinações esparsas. Tanto a Lei das Doze Tábulas (de cerca de 350 a.C.) quanto o Código de Hamurabi (de cerca de 1736-1868 a.C.) contêm previsões de obrigação de indenizar(4).
Ocorreu, contudo, a progressiva sedimentação da função reparatória, com a consequente perda de qualquer viés punitivo na seara da Responsabilidade Civil. Se, por um lado, o aspecto punitivo da Responsabilidade Civil não é novo; por outro, a sua reinserção vai na contramão da tendência de se estremarem os fundamentos jurídicos daquela sub-área e do Direito Penal. A reestruturação da Responsabilidade Civil, partindo-se de um modelo de tipicidade fechada de condutas ilícitas para outro aberto e fundado numa cláusula geral de reparação de danos, apresentaria diversos obstáculos a reincorporação da função punitiva.
Em um modelo aberto de reparação, a reintrodução da função punitiva seria inconveniente, pois não se garantiria a segurança jurídica necessária na cominação de penas, de acordo com o princípio nullum crimen nulla pena sine lege. O afastamento da Responsabilidade Civil em relação a um sistema de tipificação de ilícitos e a consequente adoção de uma cláusula geral permitiram que o sub-ramo se tornasse mais flexível, quando comparada ao Direito Penal. Por essa razão, seu campo de incidência tornou-se muito mais vasto do que o desse último (Carrá, 2014, pp. 16-17).
A comparação com os ordenamentos pertencentes à matriz Common Law é imprópria precisamente pela distinta estrutura do regime jurídico de Responsabilidade Civil, visto que, nesses países, a tipificação dos atos ilícitos ainda está presente, razão pela qual o sub-ramo jurídico em questão é intitulado Law of Torts, dado o foco nos torts (isto é, condutas ilícitas), em detrimento da reparação por si só.
O argumento de que a adoção da função punitiva contribuiria para um princípio de primazia da vítima, em detrimento do ofensor, também não convence. Os proponentes da função preventiva defendem que a Responsabilidade Civil deve priorizar a aplicação dessa função em detrimento da função reparatória, com a finalidade de se garantir a proteção do indivíduo, transcendendo a mera compensação por danos, com as consequentes despatrimonialização e personalização do Direito Civil (Jereissati & Menezes, 2016, pp. 230-231). Mas o efeito obtido é diametralmente oposto ao desejado. Ao invés de se verificar os prejuízos e as necessidades da vítima do ato ilícito, preocupa-se com o ofensor e a reiteração da conduta indesejável. Ao contrário, uma proposta que se pretenda zelosa da vítima deve reconhecer a função reparatória como principal (Moraes, 2006, p. 245.).
Por fim, há ainda o argumento do desestímulo à reiteração de condutas indesejáveis, fundado na Análise Econômica do Direito. De acordo com essa perspectiva, a estrutura exclusivamente reparatória da Responsabilidade Civil permitiria aos agentes a realização de um cálculo utilitarista que, em última medida, indicaria ser vantajosa a prática de condutas censuradas pela sociedade e pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, se o ilícito passa a compensar, as sanções jurídicas impostas contra a prática do ato revelam-se ineficazes no que diz respeito à função de prevenção geral, dissuasória, que atua mediante um controle psicológico sobre os destinatários da norma jurídica, advertindo-os contra os efeitos prejudiciais decorrentes da sua inobservância. Faz-se mister, então, verificar se, e de que forma, a Análise Econômica do Direito pode ser aplicada à Responsabilidade Civil.
2.2. A Análise Econômica do Direito aplicada à Responsabilidade Civil
A linha de pensamento intitulada Análise Econômica do Direito tem bases teóricas construídas, sobretudo, com base em ordenamentos jurídicos pertencentes à matriz Common Law. Mas a proposta vem sendo gradualmente estudada também por juristas que se debruçam sobre ordenamentos da família romano-germânica. Há um repertório de casos judiciais, no Brasil e alhures, que aponta para uma adoção de postura dos agentes econômicos em direção a essa análise utilitarista, visando à tomada de decisão a respeito da prática de atos ilícitos.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, tornou-se célebre o caso Ford Corporation v. Grimshaw, julgado em 1981. Tratava-se de acidente de trânsito causado pela explosão de um automóvel produzido pela Ford e do qual resultou a morte da condutora, além de desfiguração severa e permanente de um passageiro do outro veículo, na face e no corpo. Na perícia, constatou-se que a falha teria ocorrido em virtude da instalação do tanque e reservatório de carburador na parte traseira do automóvel, em região considerada perigosa. A decisão de colocá-lo nessa região foi motivada pela economia na produção do veículo, estimando-se que a Ford economizou cerca de quinze dólares por automóvel produzido à época. Antes da montagem em série do modelo, a Ford havia realizado dois testes de colisão do protótipo. Em ambos, aconselhou-se a retirada do tanque do local em que se encontrava. Por parte da montadora, houve um cálculo dos lucros e prejuízos possivelmente advindos de ações eventualmente contra ela pelas falhas decorrentes da configuração do veículo. No caso Civ. No. 20095, a Court of Appeals da Califórnia manteve, em última instância, o montante atribuído pelo júri no valor de 125 milhões de dólares em punitive damages (Court of Appeals da Califórnia, 1981)(5). Esse valor teria sido estipulado precisamente para se retirar da Ford as vantagens advindas da redução de custos com a prevenção.
Essa condenação é condizente com a tipologia de danos encontrada naquele país. De fato, nos Estados Unidos, há duas categorias de danos que permitem a restituição das vantagens obtidas em decorrência do ato ilícito. Assim, fala-se em restitutionary damages, ao lado dos tradicionais compensatory damages e dos punitive damages. Por isso mesmo, os damages a que se condena o responsável pelo ato ilícito têm sentido mais amplo do que o de mero prejuízo ou dano suportado pela vítima. Ao contrário, abrange toda e qualquer “tutela genérica consistente em uma condenação em dinheiro pela prática de um ato ilítico” (Rosenvald & Kuperman, 2017, p. 16).
O que se vê, portanto, é que, no âmbito da Responsabilidade Civil, a Análise Econômica do Direito está indissociavelmente vinculada a uma “economia da prevenção”, fincada na premissa de que “(...) os regimes indemnizatórios fornecem os incentivos à atividade econômica das pessoas, interferindo com a respectiva racionalidade na escolha de níveis de risco e de atividade” (Araújo, 2007, p. 841).
A precaução e seus custos seriam consagrados mediante duas espécies de normas. De um lado, as property rules atribuiriam o exercício exclusivo de certas faculdades jurídicas por determinados sujeitos, impedindo que os demais pudessem usufruir das mesmas vantagens econômicas sem uma causa jurídica para tanto (em regra, essa causa seria um negócio jurídico). De outro, as liability rules permitiriam a delimitação de um campo de atuação livre por todos os sujeitos, mas que seria custeado mediante a repartição dos riscos e dos danos que essa atuação livre acarretaria para a sociedade. A repartição dos riscos e dos danos deveria, então, ser feita a partir da identificação de quem poderia preveni-los da forma mais eficiente possível.
Seguindo essa ideia, Guido Calabresi, um dos expoentes da Law and Economics, sugeriu que a Responsabilidade Civil (Tort Law) seria um meio-termo entre o Direito Contratual (Contract Law) e o Direito Regulatório-Sancionador (Regulation/Criminal Law). Para ele, o Direito Contratual representaria a expressão jurídica máxima do liberalismo nas interações sociais, ao possibilitar a transferência de justificativas (entitlements) para a titularidade de bens jurídicos. Em contrapartida, o Direito Regulatório-Sancionador seria o domínio em que o Estado determinaria aprioristicamente a quem pertencem essas justificativas, controlando como podem ser transferidas, alteradas ou eliminadas. O descumprimento dessa prévia alocação estatal das titularidades jurídicas seria objeto de sanção.
A Responsabilidade Civil, na visão de Guido Calabresi, estaria entre um desses polos. Através dela, as transferências involuntárias, bem como a destruição de causas justificadoras, poderiam ser toleradas pelo ordenamento jurídico se lhes fosse atribuído um “preço adequado” (Calabresi, 2007, p. 1).
A explicação fornecida por Guido Calabresi para a Responsabilidade Civil, ainda que economicamente adequada, não é juridicamente aceitável, pois esbarra em preceitos éticos que fundam todo e qualquer ordenamento jurídico(6). O valor da dignidade humana (Constituição Federal, art. 1, III) estaria comprometido se a teoria de Calabresi pudesse justificar tudo a partir de uma permissão da sociedade para a lesão de bens jurídicos inalienáveis; até mesmo a vida poderia ser objeto de um cálculo dessa espécie. Tudo se resolveria através da precificação adequada do bem jurídico violado.
Essa linha de raciocínio implica na inversão completa da ordem de valores do sistema jurídico e, por consequência, no modo como a indenização opera. A indenização é resposta do ordenamento jurídico à violação de um comando de não-fazer, de não causar danos a outrem. É prevista pensando na vítima, não nas vantagens obtidas pelo agente. A norma jurídica aí contida não propõe que a conduta proscrita seja praticada. Todavia, em sendo violado o bem jurídico protegido pela norma, o ordenamento reafirma a sua força, permitindo que esse seja reparado, in natura ou, na impossibilidade dessa primeira espécie, em dinheiro. A redução do esquema indenizatório a uma atribuição de “preços” adequados para transferências ou extinções involuntárias de bens jurídicos não explica a primazia da reparação natural. Quando essa for possível, não haverá nada parecido com um “preço” a ser estipulado em contraprestação. Pelo contrário, será obtida a reconstrução do bem jurídico violado.
Para além disso, a aplicação da Análise Econômica do Direito à Responsabilidade Civil também acarretaria a transformação do conceito de culpa em um “standard de prevenção”. Em outras palavras, se o responsável pelo ato ilícito é aquele que mais eficientemente poderia preveni-lo, a noção de culpa se torna mero expediente para verificar quem poderia ter prevenido o dano e não o fez. Incorporar a análise de custo-benefício em um elemento jurídico tão variável quanto a culpa significaria delegar ao juiz a responsabilidade de decidir, depois de ocorridos os fatos, quem deveria ter implementado e executado ações preventivas.
Diante da incapacidade da Responsabilidade Civil para lidar com o problema do ato ilícito lucrativo, sobretudo após se ver que nem mesmo a Análise Econômica do Direito permitiria explicar adequadamente os seus principais pressupostos, deve-se buscar um caminho alternativo para o combate de cálculos utilitaristas. Considerando-se que a principal característica do ilícito lucrativo consiste nas vantagens econômicas obtidas pelo ofensor com a prática do ato, a vedação ao enriquecimento sem causa apresenta-se naturalmente como candidata para incidência jurídica.
3. As figuras parcelares(7) do Enriquecimento sem Causa
A ideia de uma vedação ao enriquecimento sem causa já tinha raízes no Direito Romano, com aplicação das condictio indebiti e condictio ob rem. O direito romano tinha outras condictiones, com fundamentações diversas e, em regra, havia, como pressuposto, o pagamento, sem que houvesse requisito da parte em demonstrar o fundamento de sua pretensão restitutória (Moraes, 2021, p. 120).
O âmbito de aplicação das condictiones era bastante sobreposto com o princípio de não haver locupletamento sem causa ou em razão de causa injusta. A partir desses instrumentos processuais, foram sendo construídas as raízes do entendimento dogmático que veda o enriquecimento sem causa. Nas espécies de condictiones, até mesmo na condictio indebiti, combatia-se o enriquecimento sem causa (Gomes, 1972, p. 286).
Todavia, conquanto tenha havido algumas expressões, em fontes históricas e, sobretudo, no Direito Romano, de uma ideia acerca da vedação ao enriquecimento sem causa(8), foi apenas em estágio posterior, com o desenvolvimento da Escola de Direito Natural, que uma noção geral acerca do instituto começou a se desenvolver(9).
Não obstante essas raízes antigas, os códigos oitocentistas deixaram de consagrar uma cláusula geral de vedação ao enriquecimento sem causa. Regulamentavam, no entanto, o pagamento indevido. Assim, a figura constava dos Códigos Civis francês, de 1804(10), italiano, de 1865(11), e espanhol, 1889(12). Desse modo, Menezes Cordeiro entende que soluções legais específicas do Código Civil francês, como os artigos 548, 1376, 1381, reconduziram à ideia geral de enriquecimento sem causa (Cordeiro, 2010, pp. 155-156). Dessa forma, a doutrina buscou elementos no direito positivo para cunhar um princípio geral de vedação ao enriquecimento sem causa (Rodrigues, 2006, p. 422).
Apresentando-se como um marco de um novo estágio para a vedação ao enriquecimento sem causa, o Código Civil alemão (BGB), de 1899, fez constar uma cláusula geral de vedação ao enriquecimento sem causa, em seu § 812, I:
(1) Quem, mediante a prestação de outrem ou, por algum outro modo à custa de outrem, adquire algo sem causa jurídica está obrigado face a esse último a restituir o que recebeu. Essa obrigação existe igualmente se a causa jurídica desaparece posteriormente ou se o resultado perseguido com uma prestação, de acordo com o conteúdo do negócio jurídico, não se produziu.
A expressão “por algum outro modo” possibilitou que toda e qualquer atribuição patrimonial injustificada pudesse ser combatida mediante a construção de um princípio geral de enriquecimento sem causa. Não obstante isso, a latere, as hipóteses clássicas de condictiones romanas foram igualmente previstas. Assim, apresenta-se o enriquecimento por prestação (condictio indebiti), a hipótese de desaparecimento de causa jurídica (condictio ob causam finitam), e o descumprimento da finalidade ou da prestação contratual (condiction causa data causa non secuta).
A grande amplitude textual do dispositivo legal presente no BGB não foi isenta de críticas, as quais, a partir da década de 1930, apontavam para o temor de que o princípio contido no Código alemão pudesse ser utilizado arbitrariamente contra quaisquer deslocamentos patrimoniais (Moraes, 2021, pp. 159-160). Defendeu-se, então, uma leitura restritiva do dispositivo, permitindo-se o retorno a um sistema semelhante ao do Direito Romano, fragmentado pelas condictiones, com o desenvolvimento de hipóteses específicas nas quais haveria enriquecimento sem causa.
Para a construção desse modelo dogmático restritivo do enriquecimento sem causa, foram determinantes os trabalhos de Walter Wilburg e Ernst von Caemmerer. A partir dos escritos desses dois autores alemães, cunharam-se as duas principais figuras parcelares do enriquecimento sem causa, sendo elas: (i) o enriquecimento por prestação; e (ii) o enriquecimento que não se funda em uma prestação. Vê-se que a clivagem conceitual se baseia na presença ou ausência de prestação, pressupondo haver deslocamento patrimonial entre uma pessoa (a dita “empobrecida”) e outra (a dita “enriquecida”), sem justificativa legal ou negocial.
Quando ausente uma prestação, está-se diante da segunda modalidade, respaldada pela segunda parte do § 812, I, do BGB. Nessa modalidade, desponta a hipótese de enriquecimento por intervenção, que consiste na obtenção de vantagens através do exercício, sem permissão, de direitos subjetivos alheios.
O Código Civil brasileiro de 1916, em sua origem também um código oitocentista, seguiu o exemplo dos demais. Nesse norte, Silva (2018, pp. 43-44) afirma que o Código Civil brasileiro de 1916 seguia uma influência advinda do Code Napoléon, o qual, desde 1804 até a mudança promovida em 2016(13), não continha cláusula geral do enriquecimento sem causa, apresentando uma ótica restritiva, que não conferia autonomia ao instituto. Não obstante isso, diversas disposições legais contidas no Código brasileiro de 1916 traziam, como razão subjacente, a vedação ao enriquecimento sem causa, tornando inegável a presença de um princípio geral implícito no sistema. Por essa razão, a construção de um princípio de vedação ao enriquecimento sem causa ocorreu a partir da extrapolação das bases legais previstas para o pagamento indevido (Gomes, 2008, pp. 297-300).
Quando da edição do Código Civil de 2002, esse processo já se encontrava finalizado. Em virtude disso, mas também por influência direta do Código Civil português, de 1967, o segundo Código Civil brasileiro veio a prever uma cláusula geral de enriquecimento sem causa, em seu art. 884. Não se olvidou, contudo, de fazer constar previsões específicas para o pagamento indevido (art. 876) e para a condictio ob causam finitam (art. 885). Desse modo, o que se vê no ordenamento jurídico brasileiro não é muito distinto do que se encontra em Portugal. Em ambos os países, há um modelo híbrido, com um princípio geral de vedação ao enriquecimento sem causa, em cuja órbita apresentam-se as chamadas figuras parcelares.
Assim, no Código Civil português em vigor, o art. 473º contém, em seu inciso 1, uma cláusula geral de vedação ao enriquecimento sem causa, com requisitos para a incidência da norma. No inciso 2, faz-se a previsão das figuras do pagamento indevido, das condictiones ob causam finitam e causa data causa non secuta:
1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
Menezes Cordeiro sublinha que o modelo português não tem uma única influência direta e explícita, não se podendo considerá-lo como um mero produto do Direito romano e de suas condictiones, nem sequer como um resultado puro e simples de recepção da doutrina alemã. Em consideração a isso, aponta para um “(...) modelo híbrido, a compor pela doutrina: mas não em face de uma mera recepção da doutrina alemã. De certo modo, ele confirma a natureza autónoma do sistema lusófono” (Cordeiro, 2010, p. 204).
À luz do que é previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro, Cláudio Michelon Jr. entende o enriquecimento sem causa como um princípio geral, que auxilia na interpretação de normas jurídicas, apresentando-se como critério e fundamento para diversos outros institutos, sejam eles de Direito Privado ou Público, assim como de Direito Restitutório, enquanto campo residual (Michelon Jr., 2011, p. 875).
A constatação de que o Direito brasileiro possui um princípio geral, ao lado de uma regulamentação específica, leva à conclusão pela necessidade de se conferir maior concretude ao princípio, cogitando-se acerca de possíveis elementos que possam auxiliar o intérprete, para além das normas de institutos específicos que o consagram expressamente no direito positivo. Assim, cogita-se ser possível recorrer ao Direito alemão e a doutrina que se construiu ao seu redor, para uma interpretação do princípio geral de vedação ao enriquecimento sem causa, que é amplo, abstrato e genérico.
A utilidade da comparação entre os modelos alemão e brasileiro parece advir da construção, empreendida pela doutrina alemã, de figuras parcelares que permitem categorizar as hipóteses de enriquecimento sem causa. Semelhante ao que ocorre com o modelo luso-brasileiro, o enriquecimento sem causa no Direito alemão é, simultaneamente, uma regra geral e um fundamento para normas específicas (Moraes, 2021, p. 158).
4. O enriquecimento por intervenção e o ato lucrativo
Como já se disse, o atual modelo dogmático alemão de enriquecimento sem causa é devedor, em grande medida, das contribuições doutrinárias de Walter Wilburg e Ernst von Caemmerer. O primeiro autor, ao contestar a até então clássica tese de Fritz Schulz, que vinculava o enriquecimento sem causa ao conceito de ilicitude, confundindo-o, portanto, com o enriquecimento ilícito(14), propôs uma visão estrutural, com bases econômicas, para a percepção do fenômeno. Na visão de Wilburg, antes de se verificar o enriquecimento sem causa, dever-se-ia entender a estrutura dos direitos absolutos, como o direito de propriedade e os da personalidade. O traço característica dos direitos absolutos seria o da exclusividade na fruição dos resultados deles decorrentes. Em outras palavras, o ordenamento jurídico, ao conceder a prerrogativa exclusiva de fruição das vantagens decorrentes da exploração de um determinado bem jurídico a um titular, impediria que todo e qualquer outro sujeito pudesse fazer uso desse mesmo bem ou se aproveitar das vantagens que advêm de sua exploração. Em exceção à regra, a fruição por terceiro deveria ser justificada mediante alienação do direito absoluto ou outra causa juridicamente reconhecida.
A partir dessa linha de raciocínio, a obrigação de restituir imposta pela vedação ao enriquecimento sem causa seria medida pela extensão das vantagens obtidas pelo terceiro e que tivessem conexão econômica com o bem jurídico alheio.
Algo semelhante ocorre com a obrigação de indenizar, no ordenamento jurídico brasileiro, mas, ao revés, o parâmetro indicado pelo legislador é diverso (CC, art. 944). Nessa última hipótese, não se preocupa com a vantagem auferida pelo ofensor do bem jurídico alheio, mas sim com o prejuízo suportado pelo seu titular.
A grande vantagem de se desvincular o enriquecimento sem causa do ato ilícito está em se romper com os limites da indenização, pautada pela extensão do dano. Com isso, o Direito Restitutório torna-se um campo jurídico propício para o combate do chamado ato ilícito lucrativo. Dentro dessa seara, a figura do enriquecimento por prestação representa apenas uma das modalidades de enriquecimento sem causa. Além dessa, há a do enriquecimento por intervenção, fundada tão-somente na exploração não-autorizada de bens jurídicos alheios. Diversamente do enriquecimento por prestação, o por intervenção prescinde da existência de transferência patrimonial entre um empobrecido, de um lado, e um enriquecido de outro. Para que surja a obrigação de restituir, basta que tenha havido vantagens que se liguem direta ou indiretamente ao exercício de uma prerrogativa componente do conteúdo de um direito subjetivo absoluto alheio, sem a autorização de seu titular (o chamado “conteúdo de destinação patrimonial”). Conforme resume Menezes Leitão, o enriquecimento por intervenção exige apenas que haja uma “(...) situação de alguém obter um enriquecimento por uma ingerência não-autorizada no patrimônio alheio, como sucederá nos casos de uso, consumo, fruição ou disposição de bens alheios” (2004, p. 29).
O enquadramento conceitual proposto não é desconhecido do Direito estrangeiro. Encontra-se, inclusive, em ordenamentos pertencentes à matriz Common Law. Assim, por exemplo, ocorre na Inglaterra, que, através da figura disgorgement of profits, afasta a obrigação de restituição dos damages. O disgorgement of profits teria por função extrair do ofensor os ganhos obtidos sem que a vítima tenha tido uma lesão ou diminuição patrimonial pela consequência do ato ilícito. Tal figura não encontra correlato nos Estados Unidos, visto que, nestes últimos, os ganhos obtidos pelo ofensor convertem-se nos restitutionary damages, como uma espécie de prejuízo.
Há, portanto, mesmo no conjunto dos países de Common Law, modelos diversos de tratamento do fenômeno do ato ilícito lucrativo. Enquanto, de um lado, o Direito inglês prefere dar autonomia ao instituto, de modo bastante semelhante ao que se vê com o Direito Restitutório dos países de matriz romano-germânica – dentre os quais, o Brasil se inclui –, o Direito estadunidente prefere tratar a mesma questão sob a perspectiva do Law of Torts.
No Brasil, dentre os autores que já estudaram o ato ilícito lucrativo, há quem sustente a inaptidão do enriquecimento sem causa para fundamentar a pretensão restitutória das vantagens obtidas pelo agente do ato ilícito. Nesse grupo, destaca-se Nelson Rosenvald, para quem a via do enriquecimento sem causa seria inadequada para solucionar o problema do ilícito lucrativo por três principais razões:
Para fins de restituição por lucros ilícitos, o enriquecimento injustificado - mesmo na refinada tipologia do enriquecimento por intervenção - é um equivalente funcional indesejável por três razões: a) a restituição por lucros ilícitos não pertence ao terreno do enriquecimento injustificado; b) Na restituição por lucros ilícitos não há enriquecimento na acepção da expressão “à custa de outrem” do artigo 884 do CC; c) o enriquecimento injustificado é espécie de enriquecimento independente da existência de um ato ilícito (2019, p. 291).
Todavia, os argumentos apresentados pelo autor citado não parecem ser válidos. Em primeiro lugar, há uma evidente tautologia no argumento “a”. Isso porque o que Nelson Rosenvald quer demonstrar corresponde exatamente à primeira razão apresentada e não justificada, isto é, que o enriquecimento sem causa não é fundamento para restituição de lucros ilícitos. Ou seja, o autor traz a própria pergunta como resposta para o problema dos atos ilícitos lucrativos.
Quanto ao argumento “b”, segundo o qual a expressão “à custa de outrem”, contida no art. 884, do Código Civil, impediria a restituição das vantagens obtidas pelo ofensor, deve-se entender que a expressão “à custa de outrem” não exige uma efetiva transferência patrimonial entre vítima e ofensor. Do contrário, o enriquecimento sem causa reduzir-se-ia às hipóteses de enriquecimento por prestação. Ao invés disso, a expressão “à custa de outrem” pode ser compreendida de modo a contemplar hipóteses de fruição de um direito absoluto alheio, mediante emprego da noção de “conteúdo da destinação”, conforme o que já defendia Walter Wilburg (Coelho, 1999, pp. 53-54).
Ou seja, há enriquecimento sem causa sem que se tenha prejuízo efetivo a outrem, desde que se tenham vantagens obtidas “à custa de outrem”. Eis o enriquecimento por intervenção, com a finalidade de “(...) recuperação da vantagem patrimonial obtida pelo interventor, o que ocorrerá sempre que, de acordo com a repartição de bens efetuada pela ordem jurídica, essa vantagem se considere como pertencente ao titular de direito” (Leitão, 2004, p. 9).
Por fim, o terceiro e último argumento de Rosenvald (argumento “c”) também não é convincente. O autor citado afirma que o enriquecimento injustificado prescinde da noção de ato ilícito e, portanto, não seria suscetível de combater o ato ilícito lucrativo. Há, ao que parece, uma confusão entre antijuridicidade e ilicitude em sentido estrito. Certamente, o enriquecimento sem causa não é, necessariamente, um ato ilícito em sentido estrito, entendendo-se esse de acordo com a definição presente no art. 186, do Código Civil, ou seja, quando há dano. Mas isso não significa dizer que o enriquecimento sem causa represente um ato conforme ao ordenamento jurídico. Muito pelo contrário, é tão antijurídico quanto os atos ilícitos em sentido estrito. As diferenças entre ambas as categorias ocorrem, apenas, em virtude dos pressupostos de incidência e das sanções previstas. Por isso mesmo, é possível haver sobreposição entre as figuras, desde que o contexto fático permita a incidência concomitante tanto do art. 186 quanto do art. 884, ambos do Código Civil.
Percebe-se, portanto, que o Direito Restitutório é campo jurídico adequado para o tratamento do fenômeno do ato ilícito lucrativo, visto que a sua figura parcelar conhecida como enriquecimento por intervenção permite o surgimento da obrigação de restituir as vantagens obtidas com o ato ilícito lucrativo a partir da ideia de “conteúdo de destinação” dos bens jurídicos. O ofensor, ao interferir na esfera jurídica alheia, impondo ao seu titular prejuízos e auferindo benefícios com sua conduta, retira-os do sujeito a quem o ordenamento jurídico reconhece.
Na jurisprudência brasileira, já há julgados que tratam da questão sob o prisma do enriquecimento por intervenção. É o caso do Recurso Especial 1.698.701-RJ, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2018. Tratava-se de recurso contra decisão prolatada em sede de ação indenizatória originalmente proposta pela atriz Giovanna Antonelli. A atriz havia se recusado a ser garota propaganda de um produto. A empresa publicitária promoveu, então, a contratação de uma sósia sua, confundindo os consumidores quanto à identidade da pessoa que aparecia nos comerciais. Em seu pedido, a atriz postulou especificamente não só indenização pelos danos sofridos em decorrência da violação ao seu direito de imagem, mas também todos os proveitos econômicos extraídos pela marca da associação de sua imagem ao produto anunciado. Em primeira instância, esse pedido foi negado, exatamente em virtude de a indenização restringir-se à extensão dos danos sofridos pela vítima. Contudo, em segunda instância, a decisão foi reformada, sendo acatado o recurso da atriz para se condenar a marca à restituição de parte do lucro auferido com a campanha publicitária. No julgamento do Recurso Especial 1.698.701-RJ, a Terceira Turma acolheu o recurso da atriz, para que ela recebesse “todo o acréscimo patrimonial obtido pela parte ré às custas da utilização indevida do seu nome e da sua imagem, sem nenhuma limitação”. Digno de nota é o fato de a fundamentação do Recurso ter feito alusão explícita ao enriquecimento por intervenção, sem qualquer vinculação aos danos punitivos. A esse respeito, reproduz-se parte da ementa:
3. Além do dever de reparação dos danos morais e materiais causados pela utilização não autorizada da imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais, nos termos da Súmula 403/STJ, tem o titular do bem jurídico violado o direito de exigir do violador a restituição do lucro que este obteve às custas daquele. 4. De acordo com a maioria da doutrina, o dever de restituição do denominado lucro da intervenção encontra fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, atualmente positivado no art. 884 do Código Civil. 5. O dever de restituição daquilo que é auferido mediante indevida interferência nos direitos ou bens jurídicos de outra pessoa tem a função de preservar a livre disposição de direitos, nos quais estão inseridos os direitos da personalidade, e de inibir a prática de atos contrários ao ordenamento jurídico.
Também a doutrina brasileira se manifestou, em sua maioria, pela aplicação da vedação ao enriquecimento sem causa, em detrimento da aplicação do regime da Responsabilidade Civil, quando da edição do Enunciado 620, da VIII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal: “A obrigação de restituir o lucro da intervenção, entendido como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa”.
5. Perspectivas de alteração do Código Civil brasileiro
Em 17 de abril de 2024, foi entregue ao Senado Federal um Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002, pela Comissão de Juristas Responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil (CJCODCIVIL), com relatoria-geral de Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery. O Anteprojeto promete uma ampla reforma em todo o diploma legal, bem como a inclusão de um novo livro na Parte Especial, dedicado ao Direito Digital.
No que concerne ao enriquecimento sem causa, as propostas tocam na própria estrutura do regime aplicável. Num aspecto geral, não há grandes modificações, visto que o princípio de vedação ao enriquecimento sem causa se mantém, fincado na cláusula geral contida no caput do art. 884, do Código Civil, sem modificação de redação.
Todavia, reforçando o caráter híbrido do modelo jurídico luso-brasileiro de enriquecimento sem causa, há a consagração de figuras parcelares do enriquecimento sem causa, nos parágrafos do art. 884.
Em especial, deve-se destacar a previsão legal do enriquecimento por intervenção, no § 2, do art. 884, do Código Civil (Brasil, 2024):
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, enriquecer-se à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido.
§ 1 Também se justifica a pretensão restitutória quando a causa do enriquecimento deixar de existir, for ilícita ou não se verificar.
§ 2 A obrigação de restituir o lucro da intervenção, assim entendida como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou de direito alheio, fundamenta-se na vedação ao enriquecimento sem causa e rege-se pelas normas deste Capítulo.
Ao que parece, portanto, caso a proposta logre sucesso, a inserção do § 2, do art. 884, do Código Civil, virá a servir de fundamento legal explícito para o enriquecimento sem causa por intervenção e este, por conseguinte, justificará a restituição das vantagens decorrentes do ato ilícito (o chamado ato ilícito lucrativo).
Todavia, o mesmo Anteprojeto apresenta outra proposta que vem a ser contraditória com a primeira. No bojo das disposições acerca da Responsabilidade Civil, propõe-se a inclusão de um § 2 ao art. 944, dispositivo legal que apresenta as diretrizes para o arbitramento da indenização:
§ 2 Em alternativa à reparação de danos patrimoniais, a critério do lesado, a indenização compreenderá um montante razoável correspondente à violação de um direito ou, quando necessário, a remoção dos lucros ou vantagens auferidos pelo lesante em conexão com a prática do ilícito.
Ora, ao mesmo tempo em que se prevê o combate ao enriquecimento por intervenção (art. 884, § 2), na linha do que se entende mais adequado para o tratamento jurídico do ato ilícito lucrativo, faz-se constar, nas disposições acerca da indenização, que essa última poderá ser arbitrada, alternativamente à reparação de danos patrimoniais e a critério do lesado, em valor cuja finalidade será a de retirar do ofensor os lucros ou vantagens auferidos em conexão com o ato ilícito (art. 944, § 2).
A antinomia presente no Anteprojeto ocorreu em virtude do modo pelo qual foi produzido, com a constituição de diversas subcomissões, cada qual encarregada de analisar as necessárias modificações de certas áreas do Código, mas sem dialogar efetivamente e uniformizar as soluções propostas, de sorte a que se mantivesse um verdadeiro sistema de direito privado, tal como hoje se tem. Isso porque a previsão do ato ilícito lucrativo no seio da Responsabilidade Civil foi sugerida pela Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa, que, em suas justificativas, afirmou expressamente discordar do Enunciado 620, do CJF, e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, embasando-se, para tanto, nos argumentos de Nelson Rosenvald – por acaso, um dos membros da Subcomissão – já rebatidos acima. A mesma Subcomissão, no entanto, não havia previsto a consagração legal do enriquecimento por intervenção nos parágrafos propostos para o art. 884. Essa última proposta surgiu, apenas, no Relatório Geral, de 26 de fevereiro de 2024, apresentado pela Relatoria-Geral. A Relatoria-Geral, portanto, diversamente da Subcomissão, não fez uma clara opção entre o enriquecimento sem causa e a Responsabilidade Civil para tratar do ato ilícito lucrativo. Daí, portanto, adveio a contradição que merece ser solucionada na tramitação do Anteprojeto pelo Congresso Nacional.
Independentemente da problemática antinomia presente no Anteprojeto, a inserção do ato ilícito lucrativo nas normas acerca da indenização apresenta, além dos inconvenientes já apontados no decorrer deste estudo, também foi feita com uma redação imprecisa, com potencial para interpretações equivocadas.
Como já se viu, a indenização cuja finalidade é a remoção das vantagens decorrentes do ato ilícito pode ser postulada pela vítima, a seu critério, alternativamente à indenização por danos patrimoniais. A alternativa proposta afronta a Constituição Federal, mais especificamente o art. 5, X, que apresenta a reparação de danos patrimoniais como um direito fundamental, sem qualquer ressalva. Ora, podendo a vítima optar pelo recebimento de “indenização” correspondente às vantagens decorrentes do ato ilícito e recebidas pelo ofensor, deixa-se a descoberto a reparação por danos patrimoniais, visto que, pela dicção legal, uma indenização excluiria a outra.
6. Considerações finais
Diante de incertezas a respeito de como lidar com novos fenômenos sociais, a sociedade comumente recorre ao Direito. Em grande medida, notava-se, nos últimos tempos, um progressivo alargamento do papel do Direito Penal, como se esse ramo jurídico fosse remédio adequado para todos os males. Essa tendência foi a responsável pela proliferação de crimes de perigo abstrato e a criminalização do próprio risco.
Todavia, talvez por se começar a sentir que a inflação penal-punitiva não significou a diminuição dos riscos, os quais passaram a caracterizar a sociedade de hoje, buscou-se um outro campo jurídico que pudesse cumprir com essa difícil tarefa. A Responsabilidade Civil, num primeiro momento, mostrou-se adequada. De fato, muito daquilo que atraía a atenção da sociedade para o Direito Penal também estava presente na Responsabilidade Civil, já que em ambos se vê a presença de uma sanção jurídica, mediante resposta do ordenamento jurídico para uma conduta reprovável.
Contudo, as semelhanças param por aí. A Responsabilidade Civil serve como campo para desenvolvimento de instrumento de reparo à vítima; não de repressão ao ofensor. Os vetores que orientam um e outro ramo jurídico encontram-se em sentidos diametralmente opostos, de sorte que a inclusão de qualquer perspectiva punitivo-preventiva viria com o preço da perda de identidade da Responsabilidade Civil e, por consequência, com o desamparo à situação da vítima após o ato ilícito.
Nem mesmo argumentos utilitaristas, baseados em uma análise econômica, mostram-se compatíveis com a Responsabilidade Civil, pois acabam por contrariar os próprios fundamentos éticos que alicerçam aquele campo jurídico. Ao se enxergar tudo como uma análise de custos para a prática de determinadas condutas, a Análise Econômica do Direito descuida de um valor incalculável e sempre reafirmado pelo ordenamento jurídico: o do ser humano.
Todavia, essas conclusões não devem impedir que se encontre uma resposta jurídica para o problema do ato ilícito lucrativo. Nem tudo precisa ser enxergado como sanção jurídica. O ordenamento não se resume ao Direito Penal e à Responsabilidade Civil.
Faz-se mister perceber que a obrigação de restituir, objeto do direito restitutório, é instrumento apto e suficiente para a supressão de quaisquer vantagens econômicas que tenham sido obtidas mediante a exploração indevida e injustificada da esfera jurídica alheia.
Nessa vertente, cabe, antes de tudo, a superação da visão reducionista do enriquecimento sem causa como enriquecimento por prestação, caracterizado pelo deslocamento patrimonial de um empobrecido, credor da obrigação de restituir, a um enriquecido, devedor da mesma obrigação.
Em verdade, a cláusula geral de enriquecimento sem causa, presente no art. 884, do Código Civil brasileiro, pode vir a ser operada mediante concretização judicial. Cabe à jurisprudência a sedimentação de grupos de casos, posteriormente sistematizados pela doutrina, e, a partir disso, será possível a construção de figuras parcelares, para que o raciocínio indutivo – do especial para o geral – torne-se dedutivo – do geral para o especial.
O ilícito lucrativo pode, então, ser reconduzido à figura do enriquecimento por intervenção. As vantagens que eventualmente não foram retiradas do agente responsável, via obrigação de indenizar, serão restituídas à vítima em virtude de sua conexão com a exploração injustificada de sua esfera jurídica, patrimonial ou existencial.
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NOTAS
(*) Nota del Equipo Editorial: Este artículo fue recibido el 13 de agosto de 2024 y su publicación fue aprobada el 20 de noviembre de 2024.
(**) Advogado do Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (São Paulo , Brasil) e Universidade Jean Monnet (Saint Étienne, França). Mestre em Droit et Pratique des Contrats pela Université de Lyon - Lumière II. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professor e Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade do Estado de Minas Gerais. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos em Responsabilidade Civil (NERC). Membro da Associação Mineira de Professores de Direito Civil (AMPDIC). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6962-9777. Correio eletrônico: thalles.valim@uemg.br.
(***) Advogado pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Belo Horizonte, Brasil). Membro do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos em Responsabilidade Civil (NERC). ORCID: https://orcid.org/0009-0000-4868-1181. Correio eletrônico: gabriel06grs@gmail.com.
(1) A tese parece ter sido importada de autores franceses e italianos. A título de exemplo, na doutrina italiana, ver «¿Daños punitivos en Italia?» de Paolo Gallo (2000, p. 39). Em França, exemplificativamente, ver “Droit de la Responsabilité et des Contrats: régimes d’indemnisation”, de Philippe LeTourneau (2021, p. 803).
(2) Na doutrina, é possível encontrar também vozes a favor da função punitiva na Responsabilidade Civil, através do reconhecimento de supostamente novas espécies de dano, especialmente o dano social. A título de exemplo, ver “Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social”, de Antonio Junqueira de Azevedo (2009, p. 382); “Dano Social: Reparação, Aspectos Processuais e Destinação”, de Yuri Fisberg (2021, p. 223) y “O dano social”, de Fabrício Angerami Poli (2014, p. 210).
(3) Respondere por sua vez reenvia-nos a sponsio, instituto que possuía lugar fundamental no direito romano arcaico – e a spondere (daí sponsus, esposo, noivo). O Sponsor é um devedor; o homem que no diálogo da “estipulante”, futuro credor, vincula-se a uma prestação; por exemplo, com sua esposa, a convolar núpcias. O responsor era especialmente a garantia; em outras palavras, ele era obrigado a responder pela dívida principal de outrem (Villey, 2005, p. 136).
(4) Código de Hamurabi, § 232. “Se fez perder bens móveis, compensará tudo que fez perder e, porque não reforçou a casa que construiu e ela caiu, deverá reconstruir a casa que caiu com seus próprios recursos” (Bouzon, 1986, p. 194). “Ulpian: If a four-footed animal shall be said to have caused pauperies, loss, legal action for the same derived from the Law of the Twelve Tables. This Law sanctioned either the surrender of the thing which damaged, that is the animal which committed the damage, or else the offer of assessment for the damage” (Warmington,1938, p. 479).
(5) Uma análise detalhada do caso pode ser encontrada em Grimshaw v. Ford Motor Co. (1981, may 29).
(6) No que diz respeito à Responsabilidade Civil, não é desprezível a contribuição da filosofia aristotélico-tomista para a construção do regime jurídico: “Enfim, o princípio da justiça corretiva ou comutativa, na acepção esboçada com primazia por Aristóteles e complementada por Tomás de Aquino, apresenta-se como o fundamento primordial da reparação integral do dano positivada na norma do art. 944 do CC/2002, a compreender as funções desse importante princípio no sistema de responsabilidade civil” (Sanseverino, 2010, p. 57).
(7) Emprega-se a noção de “figura parcelar” de modo semelhante ao seu emprego junto à boa-fé objetiva. Discorrendo sobre esse último assunto, Luciano de Camargo Penteado salienta que as figuras parcelares, diferentemente dos conceitos, não permitem um juízo de subsunção de “tudo ou nada”, mas, ao invés, uma relação de “mais ou menos”, permitindo, muitas vezes, haver zonas de sobreposição entre elas (Penteado, 2007, pp. 39-70). Acredita-se que tanto a sistematização romana, por meio das condictiones, quanto a alemã, através das modalidades de enriquecimento com ou sem prestação, podem ser interpretadas como um conjunto de figuras parcelares que concretizam a cláusula geral de enriquecimento sem causa.
(8) Como demonstra a máxima de Pompônio, encontrada nas fontes romanas, segundo a qual “É justo, por direito natural, que ninguém se enriqueça em detrimento e injustamente face a outrem” (Digestas, livro 50, título 17, fragmento 206). “Iure naturae aequum est, neminem cum alterius detrimento et iniuria fieri locupletiorem”. Tradução livre a partir da versão para o castelhano, encontrada em “Cuerpo del Derecho Civil romano: digesto”, de García del Corral (1897, p. 961).
(9) A título de exemplo: “Essa Sociabilidade, que nós vimos descrever em linhas gerais, ou essa preocupação de se manter em sociedade, de uma maneira conforme às luzes do Entendimento Humano, é a fonte do Direito propriamente dito e que se reduz em linhas gerais a isso: que se deve abster dos bens alheios e restituir tudo aquilo que esteja conosco ou o proveito que foi tirado desses bens” (Grócio, 1724, p. 8, Tradução livre).
(10) Código Civil francês, art. 1.376 (versão original, anterior à reforma de 2016). “Celui qui reçoit par erreur ou sciemment ce qui ne lui est pas dû, s’oblige à restituer à celui de qui il l’a indûment reçu”.
(11) Código Civil italiano de 1865, art. 1.237. “Ogni pagamento presuppone un debito: ciò che è pagato senza essere dovuto, è ripetibile. La ripetizione non è ammessa riguardo alle obbligazioni naturali che si sono volontariamente soddifatte”.
(12) Código Civil espanhol de 1889, art. 1895. “Cuando se recibe alguna cosa que no había derecho a cobrar, y que por error ha sido indebidamente entregada, surge la obligación de restituirla”.
(13) A reforma empreendida em 2016 acrescentou um capítulo dedicado ao enriquecimento injustificado (l’enrichessement injustifié), consagrando uma cláusula geral no art. 1.303 do Código Civil francês: “En dehors des cas de gestion d’affaires et de paiement de l’indu, celui qui bénéficie d’un enrichessement injustifié au détriment d’autrui doit, à celui qui s’en trouve appauvri, une indemnité égale à la moindre des deux valeurs de l’enrichessement et de l’appauvrissement”.
(14) Com os requisitos da imediação e da deslocação patrimonial. Em lugar da imediação, a “pretensão da continuação da atuação jurídica” apenas pressuporia que o seu credor fosse, ao tempo da destinação, o titular do direito fundamento, a partir do qual se desenvolve a pretensão” (Leitão, 2004, p. 27).